Todo debate relacionado ao conceito e à história da democracia, ou regime democrático, permanecerá entre as discussões temáticas mais importantes no âmbito do pensamento político. No Brasil, enquanto república e Estado de Direito, grosso modo, tem-se o regime democrático como direcionamento da eleição e da atuação dos representantes eleitos por ocasião, especialmente, da criação e atualização das leis, a confundir-se, vez ou outra, com a compreensão da soberania popular propriamente dita.
Admite-se que não é consenso a respeito da alegada perfeição da democracia enquanto regime político em que determinados homens são incumbidos da tarefa de gerenciar os interesses e as pretensões de uma parte considerável da população. A democracia, pois, frise-se, na historiografia política e jurídica, não está à beira da perfeição enquanto doutrina e prática civilizacional.
No entanto, sobre a democracia, mesmo ciente de tais controvérsias, Paulo Bonavides (p. 344) afirma “tratar-se da melhor e mais sábia forma de organização do poder, conhecida na história política e social de todas as civilizações”. Isto é, entre as alternativas expostas no quadro da história do exercício do poder político, a democracia facilmente se enquadra na forma mais aprazível, tendo em conta, em especial, o modo de condução dos negócios públicos e a promoção e proteção de direitos humanos.
Recentemente, porém, no frenesi do debate público contemporâneo, em que, não raramente, verifica-se a prevalência de opiniões sobre a objetividade de fatos históricos, aventou-se a possibilidade de “democracia” consistir em conceito de ordem relativa, a sugerir uma maleabilidade ou flexibilidade em relação à compreensão de tal ideia, de modo que “o que é democracia para uns pode não ser democracia para outros”, mesmo que diante de práticas autoritárias para a conquista e manutenção do poder político e militar, além de flagrante violações a direitos fundamentais, como, por exemplo, a liberdade – de locomoção e de expressão –, a vida, a integridade física e moral, etc.
Neste contexto, é interessante lembrar o que Luigi Ferrajoli (2015) chamou de “esfera do não decidível”, ao relatar a insuficiência do entendimento meramente formal da democracia, apresentando, por conseguinte, a correspondente dimensão substancial ou de conteúdo. Para o jurista italiano, é preciso se atentar para “aquilo que nenhuma maioria pode validamente decidir, isto é, a violação ou a restrição dos direitos de liberdade, e aquilo que nenhuma maioria pode legitimamente deixar de decidir, isto é, a satisfação dos direitos sociais constitucionalmente estabelecidos”.
Disso, entende-se que, em qualquer Estado onde realmente se promova a democracia, nenhuma suposta maioria, menos ainda uma fração minoritária da sociedade, pode ensejar a violação de direitos de liberdade, ou simplesmente ignorar a necessidade de realização dos direitos sociais, que, em última análise, também são direitos fundamentais, tal como defende Walter Claudius Rothenburg (2021).
Dessa lição do professor Luigi Ferrajoli (2015), infere-se que a violação de direitos de liberdade em um determinado Estado, por si só, resulta na conclusão de que em tal território não há a vigência de uma democracia em seu sentido material, em consideração à chamada “esfera do não decidível”. Ao contrário, é perfeitamente possível se sustentar a existência de um regime democrático por meio da demonstração do cumprimento de formalidades estatais, porém, essa dimensão formalista não é suficiente para a compreensão da democracia em seu aspecto mais abrangente e legitimador.
Portanto, a democracia substancial é a orientação a ser observada na prática política atual, considerando-se que a restrição ou violação de direitos humanos nada tem de relativo, sendo, em verdade, uma realidade bastante evidente e esclarecedora a respeito da existência ou não de um regime genuinamente democrático em dada sociedade que se encontra sob o jugo de um Estado e de seus agentes.
Por José Bruno Martins Leão.
Referências:
BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.
FERRAJOLI, Luigi. A democracia através dos direitos: o constitucionalismo garantista como modelo teórico e como projeto político. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
ROTHENBURG, Walter Claudius. Direitos sociais são direitos fundamentais: simples assim. Salvador: JusPodivm, 2021.