“Se não vos receberem e não ouvirem vossas palavras, quando sairdes daquela casa ou daquela cidade, sacudi até mesmo o pó de vossos pés.”Mt 10,14
Não são apenas os não-católicos que repudiam o conceito de pecado, e mesmo os mais piedosos cristãos preferem se ater mais às virtudes que aos vícios da alma. Se o cumprimento dos dez mandamentos se reduziram a dois no mundo moderno – não matar e não roubar, o resto está tudo certo – os sete pecados são vistos praticamente como uma lista pequena para se fazer um exame de consciência. Os sete pecados capitais, entretanto, são apenas um guarda-chuva didático para a orientação de tudo o que nos afasta de Deus.
Para entender do que se trata um exame de consciência, eu sempre recomendo a leitura e a prática dos Exercícios Espirituais, de Santo Inácio de Loyola (Ed. Maquinaria), que oferece um método de aprofundamento para que a confissão seja realmente contrita, para que o arrependimento seja sincero e completo. Para Santo Inácio, o pecado é resultado das paixões desordenadas, e nesse caso se aplica melhor ao contexto da interferência no livre-arbítrio do próximo. Em sua obra, Santo Inácio não chega a mencionar ipsis litteris o desrespeito ao livre-arbítrio como pecado, mas a experiência espiritual nos revela essa prática como paixão desordenada, e deve ser evitado como pecado.
Mas por que estou mencionando Santo Inácio, que via na tristeza da desolação uma saída para chegar à alegria da consolação? Porque para admitir os novos pecados revelados por um bom exame de consciência, é necessário entendê-los à luz da confissão prévia, pessoal, que não se esgota na lista de pecados mortais ou veniais, mas em um mergulho dentro de si e de sua relação com o mundo e com Deus.
O pecado a que nos referimos no título chama-se interferência no livre-arbítrio.
Antes de defini-lo, gostaria brevemente de explanar sobre os dons e as graças que todos nós recebemos de Deus Pai. Nascemos com o dom do livre-arbítrio, isto é, de escolha, a partir de nossa criação à Sua imagem e semelhança. Ao mesmo tempo em que temos o direito divino de interferir, temos o dever sagrado de fazê-lo sabedores de todas as consequências de nosso ato. Este pensamento não deve, no entanto, nos causar excesso de escrúpulos em nossas ações.
Segundo Santo Agostinho, o livre-arbítrio é um Dom de Deus, conferido ao homem, permitindo-o agir livremente segundo a sua vontade. É a utilização consciente da liberdade, e fonte do mal se não for usado devidamente. Por isso, sabedores desse mal que pode advir, somos tentados a demover nosso semelhante de decisões que, por experiência ou zelo, sabemos que poderá prejudicá-los ou a outros.
Os anjos, por exemplo, nunca tiveram esse dom, e é o que difere a natureza angélica da natureza humana. Ora, se Deus nos deu a todos o dom de escolher, corromper essa graça é ofender também àquele que a concedeu.
Há aqui que se discernir entre interferir no livre-arbítrio do outro e orientá-lo para o caminho do bem. A linha entre a virtude de dar bom conselho e manipular é tênue, assim como se comportam a virtude e o pecado.
Ensinar ao filho como se comportar, criticar um amigo que está no erro e prejudicando o outro e a si mesmo é obrigação e nem se discute. Interferir no livre-arbítrio alheio é substituir a escolha do outro pela sua própria, sem ter certeza das consequências ou das implicações que essa substituição possa acarretar. Decisões sobre missão, vocação, visão de mundo, por exemplo, quando são fruto de profunda oração e vivência pessoal, não devem sofrer interferências de terceiros, porque será o outro a pagar pelo ato ou pela omissão que nós determinamos que ele cometesse.
Há pouco tempo abandonei o uso do termo “empatia” para passar a utilizar a palavra “conexão”. Empatia significa colocar-se no lugar do outro, o que pode ser pedagógico, mas é no mínimo uma farsa, porque o que o outro sente, ele o faz com sua história; ao colocar-me no lugar dele, eu o faço com a minha. Portanto, não é possível colocar-se, literalmente, no lugar do outro, a não ser estabelecendo uma conexão com ele a partir de mim. E estabelecer essa conexão é uma Graça, um Dom. Não é um exercício que se possa praticar a partir da misericórdia pessoal, mas da piedade divina.
Respeitar o livre-arbítrio é tão importante que desrespeitá-lo é a origem da censura, da maledicência, do falso testemunho, da dissimulação, da manipulação e da mentira. Alguns desses pecados estão na lista, outros não, mas nosso exame diário deve incluí-los.
O jovem padre sofre com amigos e parentes que o censuram por sua escolha de servir a Deus. É muitas vezes ridicularizado, criticado e apartado da família. A moça que se recusa a casar logo é taxada de que ficará para tia, ou elogiada porque agora pode cair na gandaia sem ninguém para dar satisfações. O estudante abandona a faculdade de Engenharia para fazer música, logo o povo em volta vai dizer que morrerá de fome.
Situações em que não se aplica a interferência no livre-arbítrio: dizer as verdades às crianças e aos adultos sobre a fé católica, sobre o inferno e as consequências de atos pecaminosos. Defender-se e ao outro diante de ofensores, recorrer às autoridades para comunicar situações de violência doméstica, de vandalismo, de falta de higiene e de práticas que causem doenças como a Dengue, por exemplo. Isso tudo, ao contrário, é virtude. Deixo aqui algumas reflexões para o exame de consciência acerca da interferência no livre-arbítrio:
- Por que quero demover essa pessoa de sua decisão?
- Essa decisão me afeta de que maneira a ponto de eu querer que o outro se demova dela?
- Estou preparado para as consequências infelizes para a vida dessa pessoa, sendo eu solidário a ela?
- Tal decisão foi fruto de oração, meditação profunda e reflexão dessa pessoa e minha também?
- Usei de coerção emocional para convencê-la do contrário?
- Ameacei ou usei de violência para convencê-la do contrário?
- Tentei persuadi-la com mentiras, falsos testemunhos e fofocas?
- Procurei amedrontá-la com exemplos descontextualizados?
- Usei de razão para demovê-la, com boa intenção?
- Minha boa intenção de interferir em sua decisão pode gerar maus frutos?
- Dei um conselho útil e edificante para ela e para Deus, ou acomodei minha orientação no pensamento de que o mais importante é ser feliz?
Se o caso for realmente importante é pontual, sugiro que você use um bloco de anotações ou um caderno para registrar essa experiência, que certamente será muito enriquecedora para seu desenvolvimento espiritual.
Não se deve esquecer que muitas vezes é melhor manter-se em silêncio e ouvir, mais se interessando pelas razões, apenas fazendo algumas perguntas para que o outro tire as suas próprias conclusões a respeito do que há de vir de suas escolhas. Está também é uma recomendação contida nos Exercícios Espirituais, um tesouro da tradição cristã que tem guiado sábios há mais de cinco séculos.