Na semana passada li uma reportagem na bbc que me chamou a atenção para uma reflexão sobre a atual conjuntura social/digital que vivemos.
A reportagem era sobre uma empresa de artigos esportivos que criou com inteligência artificial uma influencer fitness, como a própria matéria descreve: de corpo perfeito, de hábitos saudáveis, com cabelo rosa seguindo as tendências da moda contemporânea e com um nome descolado: Aitana Lopez, com apenas um ponto negativo aparente: o de que essa “pessoa” não é real.
E imaginem vocês a minha surpresa ao descobrir que essa é a mais popular de um grupo de influencers gerados por inteligência artificial e que Aitana fatura um dinheiro alto em publicidade e vendas de artigos esportivos.
O bizarro são ver os funcionários explicando que “programam” a influencer para fazer o que um influencer real faria nos stories e que utilizam um “jogo” de luz e sombras para deixar mais real a “aparência” da Aitana.
Aqueles acostumados com os problemas filosóficos, concordarão que essa questão do que é real ou não é antiga e de certa maneira central na tradição do pensamento filosófico e especialmente, quando falamos de filosofia antiga, no pensamento platônico.
No diálogo de Platão, denominado: Teeteto ou Do Conhecimento, o personagem Sócrates questiona o jovem Teeteto sobre o que seria o conhecimento, que responde: “penso que aquele que conhece qualquer coisa, percebe o que conhece; e como parece no momento, o conhecimento não passa de uma percepção.”
A resposta de Teeteto representa o pensamento relativista de Protágoras de Abdera na época de Platão e de certa maneira o relativismo que até hoje impera no pensamento contemporâneo, se considerarmos por exemplo: as filosofias morais de Nietzsche e a escola de Frankfurt, e os pensadores pós-modernos.
A visão defendida por Teeteto em resposta para Sócrates é sustentada por Protágoras e também Heráclito de Éfeso, que respectivamente sustentavam que “o homem é a medida de todas as coisas” e que o “princípio de todas as coisas era o devir, ou o movimento, o que significa em outras palavras que nada existe de forma essencial e imutável, mas tudo na realidade é um “vir a ser”.
Essa visão epistemológica é sintetizada brilhantemente por um trecho desse mesmo diálogo por Sócrates: “Enquanto a visão proveniente do olho e a brancura proveniente do que contribui para produzir a cor se movem de uma para outra, o olho torna-se repleto de visão e principia, então, a ver, tornando –se certamente não visão, mas olho que vê; paralelamente, o objeto que foi parceiro na geração da cor fica repleto de brancura e torna-se, por sua vez, não brancura, mas branco.”
Nesse momento não se tem distinção do que é o observador e o que é objeto, visto que no devir eles só existem quando em contato um com o outro, em outras palavras: tornar-se simultaneamente o ser.
Interessante que Sócrates facilmente refuta esse arcabouço epistemológico argumentando a respeito de situações como em um sonho ou na doença da loucura que pode provocar alucinações e sensações avessas a normalidade, creio que se Sócrates estivesse vivo hoje, citaria também o Instagram, TikTok e as inteligências artificiais.
A crítica de Sócrates nesse aspecto é levantar pontos em que a percepção é diferente do real, não podendo mais ser sustentada como o real, exatamente o ponto central na crítica presente neste artigo para a nossa realidade digital atual.
Influencers digitais gerados por inteligências artificiais, apresentando corpos ideais, se comportando como pessoas reais e faturando com publicidade, algoritmos abastecidos com dados de navegação dos usuários de forma a manipular os desejos de compra de cada um, bolhas de informações políticas e ideológicas geradas nas redes sociais que moldam a percepção de determinados grupos em relação a realidade vivida de acordo com seus iguais e os afastam de compreender o cenário todo, notícias falsas ou seletivamente selecionadas e descontextualizadas sendo disseminadas pelas redes com objetivo de manipular a opinião pública.
Também coachs usando a manipulação emocional armados de supostas estratégias de enriquecimento fácil faturando milhões em cursos, centenas de falsos especialistas ou pelo menos despreparados disseminando suas ideias nas redes como se fossem verdades inquestionáveis, crianças utilizando redes como o TikTok e sendo expostas a conteúdos sensuais dessensibilizados ocasionando a sexualização precoce da sociedade, plataformas de venda de conteúdos sexuais explícitos (prostituição legalizada e digitalizada sob a desculpa de “conteúdos” autorais).
Se nos voltarmos ao diálogo platônico em questão, a um trecho que demostra como do ponto de vista epistemológico nós chegamos a essa condição social: “A união e o atrito dessas forças (aquilo que é sujeito e aquilo que é objeto da percepção) geram um rebento numericamente infinito, mas sempre gêmeo, ou seja, a percepção é sempre gerada juntamente com o objeto percebido e então a elas atribuímos os nomes aos sentidos: visão, audição, olfato, tato, prazer, dor, desejos, temores etc.” Lembremos aqui, que essa é a visão do relativista Protágoras e dos defensores do devir de Heráclito, ou seja, sob essa epistemologia a percepção(sentidos) é a única realidade verdadeira gerada juntamente ao encontro dos objetos a serem percebidos.
Mas se essa epistemologia foi refutada por Sócrates e Platão no passado e nos foi mostrado as falhas lógicas de aceitar as proposições relativistas, então porque a sociedade encontra-se nessa caverna digital?
No livro sétimo da república de Platão, encontramos a famosa analogia do mito da caverna: “Agora, com relação à cultura e à falta dela, imagine nossa condição da seguinte maneira. Pense em homens encerrados numa caverna, dotada de uma abertura que permite a entrada de luz em toda extensão…Encerrados nela desde a infância, acorrentados por grilhões nas pernas e no pescoço que os obrigam a ficar imóveis, podem olhar para frente…Atrás e por sobre eles, brilha a certa distância uma chama…poderiam ver algo mais do que as sombras projetadas pela chama na parede da caverna diante deles?”.
Desde o princípio dos debates filosóficos é possível ver uma “batalha” entre aqueles que sustentam uma posição de verdade essencial contra aqueles que defendem uma posição de verdade circunstancial, a consequência da vitória de um ou de outro podemos ver na nossa cultura.
Mesmo que tenha muitos argumentos para sustentar o “lado” socrático, a sociedade ao longo da história foi gradativamente afastando-se de tais posições e aderindo as posições contrárias, de pouco em pouco aceitando os pressupostos relativistas, não necessariamente devido a plena aceitação sistemática dessas preposições, mas muitas vezes devido as suas próprias inclinações.
Por exemplo: determinado sujeito pode ter aceitado as premissas de uma vida conjugal aberta não porque defende um modelo estruturalmente superior de organização social teorizada previamente e amplamente estudada, mas porque sente a necessidade de saciar seu apetite sexual viciado e alimentar sua própria concupiscência.
A sociedade enfraquecida culturalmente abre caminho para aqueles que se utilizam dos apetites humanos para exercer o controle e vejam que não é referido aqui somente a classe política. Obviamente que a classe política é também um exemplo disto, mas me refiro aqui a todo um arcabouço de coisas que podem ser utilizados por uma classe política.
A caverna é sustentada no momento em que aceitamos ainda que em boa parte da sociedade inconscientemente os pressupostos destas filosofias “baixas” como o relativismo e o absolutismo do devir e temos então nossa visão do mundo, nossa “epistemologia” moldada por aquilo que é aparente, passageiro, como disse Teeteto em resposta a Sócrates, moldado pela percepção somente.
Então dito isso conseguimos entender o porquê da existência de nossa caverna atual, mesmo com a rica tradição de pensamento que temos. Creio que o ponto central disto tudo é compreender então, por que permanecemos aprisionados?
Obviamente que sem novidade alguma a resposta está também na filosofia de Platão, pois aquele que teve o privilégio de ser libertado, pois é quase impossível libertar-se a si mesmo, ainda reluta em contemplar o sol, pois a luz (da verdade) ofusca sua visão causando dor ao indivíduo sendo mais fácil permanecer nas sombras da caverna.
O sujeito de Platão eventualmente acostuma-se com o sol e passa a compreender a riqueza da verdade em detrimento a mentira que vivia antes e num ato de altruísmo e amor pelo conhecimento desce novamente a caverna, mas como seus olhos não mais são acostumados as trevas, visto que agora enxerga na luz, no primeiro momento fica desnorteado em meio a ignorância e ao tentar passar o conhecimento sobre a verdade do mundo fora da caverna a seus prisioneiros é morto, tido como louco, por aqueles que habitam as trevas e nela estão acomodados.
Como Sócrates deixou dito, o trabalho dele como filósofo era semelhante à de uma parteira, que conduzia a mulher pelas dores do parto até o nascimento da criança, reitero aqui o papel do filósofo com a humanidade, ainda que esta sofra as dores do parto para conceber a verdade, ainda que seus olhos doam como o do prisioneiro liberto de Platão e estes se voltem contra seu libertador, o papel do filósofo é voltar as trevas e comunicar aqueles que lá habitam sobre a sua própria ignorância.
Então encerro este artigo dizendo a vocês que: jamais terão o corpo e a beleza da influencer gerada por inteligência artificial e não fiquem tristes por isso, pois ela é meramente uma imagem, não se preocupem por não conseguir comprar os produtos nos anúncios das redes, pois vocês nunca precisaram deles, o que sua bolha de Facebook e LinkedIn discutem, não é a única discussão existente, as notícias que te chocam não é um retrato fidedigno da realidade, os choachs não possuem o segredo para o sucesso, nem todo mundo que diz as coisas na internet sabe o que está dizendo, não é normal deixar nossas crianças expostas a conteúdos sensuais pois no futuro sofreremos com uma sociedade psicologicamente doente e não é por que você assina um serviço exclusivo de pornografia digital, que você não está consumindo prostituição e alimentando os vícios morais.
O trabalho do filósofo é o mais árduo pois tem como reação a rejeição, mas tem como retorno a ataraxia, pois nos afastamos dos ruídos permanentes das confusões sociais e buscamos uma felicidade plena e consciente da nossa existência.
Referências:
Platão – A república
Platão – Teeteto ou do Conhecimento
Platão – Apologia à Sócrates
Danilo Marcondes – Textos Básicos de Filosofia
Link para o artigo citado da BBC: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c5ype2m70y2o