Em reportagem exibida pelo Fantástico (Globo) no dia 8/10, a correspondente internacional Cecilia Malan referiu-se ao regime totalitário do clérigo Islâmico Ebrahim Raisi como “conservador”.
É notável a argumentação persecutória e errônea da Rede Globo ao atribuir a um regime totalitarista, de economia centralizada, e que não observa as verdadeiras tradições milenares da monarquia iraniana, e impõe um regime unilateral, inflexível e inquisitorial à sociedade civil, como sendo “conservador”.
A verdade é que, antes da Revolução Islâmica de 1979 – e a tomada do poder pelo Ayatollah Ruhollah Khomeini-o Irã vivia um regime que respeitava suas tradições “conservadoras” (pun intended), como a vestimenta tradicional –uso do chador (manta feminina), hijab (lenço para cobrir o rosto), turbantes e túnicas-mas o uso era facultativo, caracterizando-se como uma escolha pessoal em respeito à crença religiosa. Cristãos, judeus e diferentes denominações Islâmicas coexistiam pacificamente durante a monarquia de Shah Mohammed Reza Pahlevi, e mesmo que houvesse pena de morte no regime, ela reservava-se a crimes hediondos, e jamais de caráter fundamentalista. E os métodos não incluíam o hoje presente e draconiano “apedrejamento”, presente na sharia (sistema jurídico do Islã), podendo ser reforçada pelo código penal iraniano.
O 4°, 5° e 6° princípios do conservadorismo propostos pelo filósofo norte-americano Russell Kirk (1918 –1994), discorrem sobre “prudência, variedade e imperfectibilidade”, o que nos leva a crer que a interpretação islâmica da monarquia de Shah Mohammed Reza Pahlevi é que observava tais preceitos. Cecilia Malan já leu Russell Kirk? Resta-nos a dúvida.
Como cita Hooman Majd no livro “The Ayatollah Begs To Differ: The Paradox of Modern Iran”(New York: Anchor, 2009. 320 pgs.), “[antes da revolução] as decisões, que tomadas por grupos de bairro, foram transferidas para o Islã e o Velayat-e-Faqih, o ‘governo da jurisprudência’”, que é a base mesma da centralização no Líder Supremo islâmico–o extremo oposto de um governo verdadeiramente “conservador”, não-fundamentalista, aberto ao livre-mercado, e que respeita a diversidade social e cultural, em toda a sua amplitude. “No Shia Islã (predominante na atual República Islâmica, mas interpretado de forma fundamentalista) os desejos sexuais de ambos homens e mulheres sempre foram compreendidos; afinal de contas, permite-se (permitia-se) o ‘casamento temporário’ (grifo nosso) com curtas durações de até uma hora, conhecido como sigheh, com o objetivo de diversão religiosamente sancionada. O que na cultura ocidental pode ser considerado sinônimo de ‘ficar’”, prossegue Hooman, apontando que o “Islã (tradicional, não-fundamentalista, praticado antes da revolução de 1979) é baseado na amizade e no amor, e na ideologia islâmica da liberdade, […] de diálogo, e não do sangue. “Basta analisar o comportamento político e belicista do Irã antes e depois da Revolução Islâmica de 1979, para corroborar as palavras do supramencionado livro. Havia diplomacia entre Israel e Irã. Havia tolerância à diversidade, e, ao mesmo tempo, respeito pacífico às tradições. “Mas, e com relação à falta de liberdade na República Iraniana? […] Coisas[violentas]são feitas em nome do Islã, mas não são islâmicas.”
Está claro que o fundamentalismo islâmico da República estabelecida após a Revolução desrespeita os verdadeiros preceitos ontológicos do Islamismo.
“A monarquia entrou em colapso e uma república islâmica acabou por sucedê-la. […] Se começarmos com o levante de Siahkal em 1971, a revolução terá um caráter marcadamente marxista. Sem dúvida, muitos dos slogans e grande parte da iconografia visual das manifestações maciças que levaram à saída do Shahem janeiro de 1979 e ao retorno de Khomeini em fevereiro do mesmo ano eram de fato de caráter islâmico”. Mas (1) os slogans e a iconografia nacionalistas e socialistas estavam igualmente presentes durante a mobilização revolucionária, (2) a insígnia islâmica do levante revolucionário tomou emprestado livremente os vocabulários nacionalistas e socialistas e (3) para formar uma frente unida contra a monarquia, muitas forças islâmicas nacionalistas, socialistas e até mesmo não clericais (como os Mojahedin) se uniram à liderança centralizada do Ayatollah Khomeini”, escreveu Hamid Dabashi, Professor de estudos iranianos e literatura comparada da Columbia University, de Nova York. Marxismo, socialismo, destituição da monarquia e liderança centralizada, como na URSS de Vladimir Lenin e Josef Stalin, após a derrubada do czar Nicolau 2°. “Revolução”. O que há de “conservador” nisto?
Nenhuma “Revolução” (e a Islâmica de 1979 não poderia ser diferente) busca preservar os paradigmas culturais, sociais e políticos do governo que consegue destituir. Sempre há um projeto de poder atrelado às revoluções, que nas intenções dos grupos revolucionários representa a “felicidade utópica” de seus súditos, como descreveu Michael Oakeshott (1901 – 1990), dispostos a matar em nome do “bem maior” de sua seita absolutista. No caso do atual regime iraniano, o “Califado Universal“, como cita Olavo de Carvalho (1947 –2022), que tem como “teocrática a estrutura do poder dominante”, e onde a “Fraternidade Islâmica, condutora do maior processo, é uma organização transnacional”, o que aí entra em direta contradição com o 7° princípio conservador de Russell Kirk, “liberdade e propriedade”, em face à sanha de dominação do Califado Universal.
Como ainda explica o Professor Olavo de Carvalho, “o Globalismo ocidental declara não ter outros inimigos senão o terrorismo, que ele identifica[…] como o ‘fundamentalismo’, noção em que se misturam indistintamente os porta-vozes ideológicos do terrorismo islâmico e a ‘direita cristã, como se esta fosse aliada daquele e não uma de suas principais vítimas (de modo que o medo do terrorismo islâmico é usado como pretexto para justificar o boicote oficial à religião cristã na Europa e nos EUA!”. Certamente também no Brasil, pois a Rede Globo (Globalista até no nome!) aproveita-se do fato de que o termo “conservador” no Brasil é fortemente atrelado ao tradicionalismo Cristão, e une o útil ao agradável, reduzindo todos os conservadores a brucutus retrógrados, racistas, assassinos de mulheres e homossexuais, genocidas insanos. “Tem método!”
O que o filósofo britânico Roger Scruton (1944 –2020), um dos mais prolíficos intelectuais conservadores de todos os tempos, diria sobre tal comparação? No livro “Como Ser Um Conservador” (Rio de Janeiro: Record, 2015.335 pgs.), Scruton declara que “a civilização[ocidental]não pode sobreviver se continuarmos a nos curvar aos islamitas[radicais]”. Pois é, um dos mais importante pensadores conservadores em toda a história é um declarado antirradicalíssimo islâmico. “Posteriormente, defendi essa posição em The West and the Rest [O Ocidente e o resto], um livro publicado em 2002 em resposta às atrocidades do 11 de Setembro”, prossegue Scruton. Notem que o filósofo não “parabeniza” os terroristas islâmicos fundamentalistas pelo seu “conservadorismo antiprogressista “após o atentado supramencionado às Torres Gêmeas, mas antes chama suas ações de “atrocidades”. Cecilia Malan confunde fundamentalismo extremista, de caráter absolutista, centralizador e socialista com conservadorismo. Das duas, uma: Ou erra inadvertidamente, ou propositalmente. Não sei o que é pior. Infelizmente muitos que assistem a Globo ainda caem neste tipo de engodo argumentativo.
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Referências:
MAJD, Hooman. The Ayatollah Begs To Differ. New York: Doubleday, 2008. (Pg. 29, 171, 214)
DABASHI, Hamid. Iran: A People Interrupted. New York: The New Press, 2008. (Pg. 146)
OAKESHOTT, Michael. Rationalism in Politics and Other Essays. London: Merhuen & CoLtd, 1962. (Pg. 169)
CARVALHO, Olavo de. Os EUA e a Nova Ordem Mundial. Campinas: Vide Editorial, 2020. (Pgs. 45 –49)
SCRUTON, Roger. Como Ser Um Conservador. Rio de Janeiro: Record, 2015. (Pg. 30)