Não há dúvidas de que a autoridade judicial, doravante denominada apenas juiz, ocupa função primordial no desenvolvimento do sistema de justiça de um país. Especialmente em países onde a separação das funções estatais e o respeito aos direitos humanos são alçados ao patamar de imperativos inafastáveis da conjuntura democrática, o juiz desempenha a chamada função jurisdicional (aplicação do direito ao caso concreto) com observância contínua dos princípios e valores constitucionais que norteiam a compreensão mais abrangente possível de uma das maiores diretrizes da República brasileira, a dignidade da pessoa humana.
De regra, o exercício de cada atividade profissional é regulado por uma série de mandamentos de ordem ética, muitos dos quais podem estar escritos na Constituição do Estado e/ou na legislação infraconstitucional, ou seja, no conjunto de leis que estão “abaixo” da Constituição, encontrando nesta o seu superior fundamento de validade. No caso do juiz, o raciocínio é ainda mais centrado nas normas presentes não apenas na Constituição e na legislação nacional, como dito acima, mas, também, no direito internacional, como instrumento de orientação legislativa.
Um dos deveres atribuídos ao juiz é a chamada atuação imparcial, ou simplesmente imparcialidade. Por definição, entende-se por imparcialidade judicial a ausência de interesses por parte do juiz no resultado do processo cuja gestão se encontra sob o seu comando; isto é, grosso modo, juiz imparcial é aquele que não “torce” pela vitória ou pela derrota de qualquer uma das partes (autor ou réu, requerente ou requerido) no processo.
Dada a importância, até mesmo histórica, da imparcialidade para a atuação do juiz, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, em seu artigo 10, afirma que “Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou fundamento de qualquer acusação criminal contra ele” (DUDH, 1948).
Nos Princípios de Bangalore de Conduta Judicial, a imparcialidade é o segundo valor a ser considerado na atuação do juiz, de maneira que “A imparcialidade se refere a um estado de espírito ou atitude do tribunal em relação aos assuntos e às partes em um caso em particular. A palavra imparcial conota abstenção de parcialidade, real ou aparente” (ONU, 2008, p. 6).
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, denominada Pacto de São José da Costa Rica, em seu artigo 8, 1, sustenta que “Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza” (BRASIL, 1992).
A título de esclarecimento, convém lembrar que o Pacto de São José da Costa Rica não se enquadra, tecnicamente, na categoria de direito internacional, porque promulgado, no Brasil, pelo Decreto nº 678/1992. Aliás, de acordo com o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do RE nº 466.343/SP, tal documento é considerado supralegal, ou seja, está “abaixo” da Constituição Federal e, ao mesmo tempo, “acima” da legislação comum.
No Brasil, a ideia de imparcialidade judicial está contida no chamado princípio do juiz natural, previsto no art. 5º, XXXVII e LIII, da Constituição Federal de 1988, segundo os quais, respectivamente, “não haverá juízo ou tribunal de exceção” e “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (BRASIL, 1988).
Como se percebe, a imparcialidade judicial é tratada como um dever, um comando que, consequentemente, há de ser obrigatoriamente observado e cumprido por todo e qualquer juiz. No entanto, Bárbara Gomes Lupetti Baptista, em interessantíssimo artigo científico publicado em 2020, na Revista de Estudos Empíricos em Direito, traz-nos uma perspectiva bastante provocativa – no melhor dos sentidos – a respeito do tal dever de imparcialidade judicial.
Em seu artigo – uma espécie de recorte temático de sua tese de doutorado –, a autora retrata as opiniões de vários operadores do sistema de justiça brasileiro sobre a dita imparcialidade judicial. Em um ponto do seu texto científico, ela relata o seguinte:
Curioso que, muito frequentemente, os meus interlocutores expressavam logo no começo das entrevistas: “eu não acredito em imparcialidade” ou “você sabe que a imparcialidade é uma coisa que não existe, né?” E também categorizavam-na como sendo “mito”, “quimera”, “fábula”, “utopia”, “fantasia”. Ao passo que, ao final das entrevistas, costumavam dizer que, apesar de a imparcialidade “não existir”, é preciso sustentar a sua crença, porque “se o judiciário assume que o juiz não consegue ser imparcial, o sistema vai falir. Acaba o sistema.”. “As pessoas têm que acreditar que ali tem um juiz imparcial, senão ninguém mais vai ao Judiciário para resolver seus problemas; vão resolver tudo sozinhos”. (BAPTISTA, 2020, p. 209).
Adiante, em seu brilhante trabalho, sobre a imparcialidade judicial, a autora afirma que “A mera desconfiança de sua inexistência provoca também a desconfiança no sistema de justiça e a diluição da crença dilui o próprio sistema, de modo que mantê-la viva é manter vivo o próprio sistema de justiça” (BAPTISTA, 2020, p. 211).
Baptista (2020, p. 211) chegar a transcrever alguns relatos que ouvira durante a sua pesquisa de doutoramento. Particularmente, uma das opiniões que mais achei interessantes foi a obtida da entrevista com um desembargador, não identificado, por evidente. Veja:
A nossa decisão só será respeitada se formos imparciais e isso é o que segura o sistema. Você não pode esvaziar esse discurso. É isso que sustenta tudo. Se você for estudar o conceito de jurisdição, você vai ver que o que sustenta a existência do Judiciário é a imparcialidade, que está ligada a confiança das pessoas a se dirigirem até aqui e transferirem a nós o poder de decidir as suas vidas. Sem isso, o que que a gente vai fazer? O nosso trabalho é esse. Sem isso, o sistema não tem legitimidade nenhuma e não se sustenta. (BAPTISTA, 2020, p. 211).
Nas considerações finais, uma das conclusões a que a autora chegou foi a de que, “Entre o dever de parecerem imparciais e o fato de serem humanos, o trabalho revela que os magistrados transitam em um sistema de crença na sua própria imparcialidade, construída discursivamente pelo campo do direito e que funciona como uma categoria estruturante do sistema judiciário” (BAPTISTA, 2020, p. 221).
Disso tudo, podemos concluir também que juízes são seres humanos como quaisquer outros, exceto no que diz respeito ao conhecimento jurídico aplicado e à perspectiva experiencial e decisória que possuem sobre os conflitos que existem na sociedade. Desse modo, como seres humanos, todos falíveis por natureza, também estão sujeitos às vicissitudes, às falhas e às incoerências do agir humano, desde que tais comportamentos não prejudiquem os direitos fundamentais de outrem, o que afetaria a dignidade do cidadão/jurisdicionado, a integridade do cargo e a credibilidade no sistema de justiça.
Por fim, não vejo modo melhor de encerrar este artigo do que com uma recomendação de leitura e uma proposta de ação por parte do leitor. Em primeiro lugar, até para obter informações mais detalhadas sobre o tema, sugiro, respeitosamente, a leitura do artigo da doutora Bárbara Gomes Lupetti Baptista, que está referenciado logo abaixo. Em segundo lugar, após a leitura do referido artigo, peço ao leitor para que registre, aqui, a sua opinião a respeito da pergunta que intitula esta reflexão: “Seria a imparcialidade judicial um mito?”.
Uma ótima reflexão a todos!
Referências:
BAPTISTA, Bárbara Gomes Lupetti. A crença no princípio (ou mito) da imparcialidade judicial. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 7, n. 2, p. 203-223, jun. 2020. Disponível em: file:///C:/Users/Usuario/Downloads/reedpesq,+203-223+-+470.pdf. Acesso em: 19 fev. 2023.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 19 fev. 2023.
BRASIL. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em: 23 jan. 2022.
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS (DUDH): adotada e promulgada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III) em 10 de dezembro de 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 19 fev. 2023.
NAÇÕES UNIDAS (ONU). Escritório Contra Drogas e Crimes (Unodc). Comentários aos Princípios de Bangalore de Conduta Judicial. Tradução de Marlon da Silva Malha e Ariane Emílio Kloth. Brasília: Conselho da Justiça Federal, 2008.