O estudo jurídico das relações negociais civis perpassa por três institutos: o negócio jurídico, a obrigação e o contrato. O objeto desse texto inicial será voltado para o primeiro deles, reservando os demais para textos futuros.
Pois bem. Entende-se por negócio jurídico toda declaração humana por meio da qual as partes (pessoas envolvidas) visam a auto-disciplinar os efeitos jurídicos pretendidos, segundo os princípios da função social e da boa-fé objetiva. Note-se que, diferentemente do ato jurídico em sentido estrito[1], aqui, vigora o princípio da liberdade negocial no que tange à escolha dos efeitos perseguidos.
A estrutura jurídica do negócio pode ser dividida em três planos de análise, a saber:[2]
- Plano de Existência: o plano de existência não foi expressamente contemplado no CC/02. Mas trata-se de plano de suprema importância, em que se estudam os elementos constitutivos ou pressupostos existenciais, sem os quais o negócio é um NADA. São eles: i) vontade; ii) agente; iii) objeto; iv) forma. Na falta de qualquer desses elementos o negócio é inexistente.
- Plano de Validade: é no plano da validade que o negócio jurídico encontrará plena justificação teórica, apreciando o papel maior ou menor da vontade exteriorizada, bem como os limites da autonomia privada, a forma, o objeto e o conteúdo.[3] Sendo a validade a qualidade da qual deve se revestir o negócio ao ingressar no mundo jurídico, consistente em estar em conformidade com as regras do ordenamento jurídico, decorre – quase que intuitivamente – que os requisitos exigidos neste plano tratam da qualificação dos próprios pressupostos existenciais. Assim, qualificando os elementos existenciais, tem-se como requisitos da validade do negócio jurídico, a partir da leitura do art. 104 do CC[4]: i) agente capaz; ii) objeto lícito, possível, determinado ou determinável; iii) forma adequada (prescrita ou não defesa em lei); iv) vontade exteriorizada conscientemente, de forma livre e desembaraçada. O negócio jurídico que não se enquadra nesses elementos de validade é, por regra, nulo de pleno direito, ou seja, haverá nulidade absoluta ou nulidade.[5] Todavia, nos termos do 171 do CC, o negócio também poderá ser anulável (nulidade relativa), quando for celebrado por relativamente incapaz ou for acometido por vício de consentimento.[6]
- Plano de Eficácia: o terceiro e último plano de análise refere-se aos elementos que repercutem na eficácia jurídica do negócio. São os denominados elementos acidentais, quais sejam: i) Condição (eficácia suspensiva) – condiciona o negócio a evento futuro e incerto; ii) Termo (eficácia resolutiva) – o negócio será subordinado a acontecimento futuro, porém certo, havendo o termo inicial (dies a quo), que é o início dos efeitos do negócio e o termo final (dies ad quem), momento em que se põe fim às consequências do negócio; iii) Modo ou Encargo – impõe um dever a ser cumprido pelo beneficiário em prol de uma liberalidade maior.
Nestes termos, a depender do elemento faltante do negócio jurídico, poderá ser ele inexistente, inválido ou ineficaz. Se faltante o element da manifestação de vontade de contratar, por exemplo, o negócio será inexistente. Já se o negócio foi celebrado por manifestação de vontade, porém o agente era incapaz, o negócio existirá mas será inválido. Por fim, se o negócio foi celebrado mediante manifestação de vontade de agente capaz, mas sujeito ao implemento de uma determinada condição (por exemplo: doação de imóvel em contemplação de formação futura), o negócio jurídico será existente, válido mas ineficaz (ao menos até o implemento da condição suspensive, no exemplo dado).
Os negócios jurídicos ainda podem estar sujeitos a determinados defeitos, causando-lhes anulabilidade ou nulidade, conforme o caso.
Quando se fala em defeitos do negócio jurídico, percebe-se a presença de vícios cuja gravidade impõe a invalidade do ato. O termo defeitos do negócio jurídico é expressão genérica, que contempla tanto os vícios de consentimento (vontade), como também os vícios sociais.
A doutrina traça a distinção entre tais vícios[7]:
a) Vícios de Consentimento: dizem respeito a um aspecto interno do negócio jurídico, inerente à própria manifestação de vontade. Ocorre quando a manifestação de vontade do agente externada não corresponde ao seu íntimo. Ou seja, há mácula na vontade declarada, a qual diverge do real desejo do agente, seja por um erro, dolo, coação, lesão ou estado de perigo.
b) Vícios Sociais:nessa espécie o agente sabe exatamente o que deseja. Sua vontade é exteriorizada consoante a própria intenção. No entanto, há uma tentativa de burlar a lei. Trata-se de vício externo, de fundo e alcance social. Os grandes expoentes desse tipo de vício, sem sombra de dúvidas, são a fraude contra credores e a simulação.
Dessa forma, os vícios de consentimento diferem dos vícios sociais por uma razão muito simples: nos primeiros (vícios de consentimento) há divergência entre a vontade manifestada e a real intenção de quem a exteriorizou; já nos segundos (vícios sociais), o agente sabe exatamente o que deseja, exteriorizando a vontade com a intenção de prejudicar terceiros.
Vale lembrar, todavia, que o Código Civil não aborda a matéria dessa maneira. Na hipótese, existe visível distinção entre o comportamento doutrinário e o legislativo. Não se vê, na legislação, as expressões vícios do consentimento e vícios sociais. Em verdade, o legislador optou por chamar de defeitos do negócio jurídico o erro substancial, o dolo, a coação, o estado de perigo, a lesão e a fraude contra credores, imputando para estes a sanção da anulabilidade. Já a simulação fora tratada nas invalidades do negócio, tendo como consequência a nulidade absoluta.
Cada uma dessas modalidades de vício será objeto de detalhamento no próximo texto, pois demandam análise um pouco mais aprofundada, o que deixaria a presente abordagem por demais extensa.
Referências:
[1] Ato Jurídico em sentido estrito (não-negocial) é espécie de ato jurídico (lato sensu) que traduz todo comportamento humano voluntário e consciente, cujos efeitos jurídicos são predeterminados em lei (exs.: atos materiais – a percepção de um fruto, atos de comunicações ou participações – intimação, protesto). Não há, pois, liberdade na escolha desses efeitos.
[2] Trata-se da denominada “Escala Ponteana”, criada pelo grande jurista Pontes de Miranda, que concebeu uma estrutura única para explicar tais elementos: “Sobre os três planos, ensina Pontes de Miranda que existir, valer e ser eficaz são conceitos tão inconfundíveis que o fato jurídico pode ser, valer e não ser eficaz, ou ser, não valer e ser eficaz. As próprias normas jurídicas podem ser, valer e não ter eficácia. O que se não pode se dar é valer e ser eficaz, ou valer, ou ser eficaz, sem ser; porque não há validade, ou eficácia do que não é”. (Flavio Tartuce. Manual de Direito Civil – Volume Único. São Paulo: Editora Método, 3ª ed, 2013, pag. 193)
[3] CRISTIANO CHAVES DE FARIAS. Curso de Direito Civil. Bahia: Editora Jus Podvim, 10ª ed. 2012, pag. 600.
[4] Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:
I – agente capaz;
II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável;
III – forma prescrita ou não defesa em lei.
[5] Código Civil. Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:
I – celebrado por pessoa absolutamente incapaz;
II – for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto;
III – o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;
IV – não revestir a forma prescrita em lei;
V – for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade;
VI – tiver por objetivo fraudar lei imperativa;
VII – a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.
[6] Art. 171. Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico:
I – por incapacidade relativa do agente;
II – por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores.
[7] MARIA HELENA DINIZ. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral do Direito Civil, 31ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.