Ouvi a frase que dá título a esse texto no filme “Um homem de sorte” (filme dinamarquês, distribuído pela Netflix em 2018). Nele, o personagem a exprimiu quando um padre o procurava consolar de seus infortúnios, após perder a fortuna e prestígio que até então gozara. Desconsolado, mergulhado em suas dores, disse olhando firmemente para o padre com um certo desdém: “para quem encontrou a si próprio, Deus é supérfluo!”. Desde então, tenho pensado se a expressão pode ter algum tipo de significado sob a Doutrina Espírita Kardecista. Ora, se no início o homem adorava vários deuses, depois passou a monoteísta, por que não poderia deixar de cultuar, relegando Deus à insignificância? Afinal, qual a importância de Deus para o nosso desenvolvimento moral?
Incapazes de compreender Deus, normalmente o imaginamos de modo antropomórfico como um ser separado da humanidade, talvez sentado em um trono e de barbas brancas, bem ao gosto do Renascimento. Recorremos a ele como orientador de nosso caminho, de como proceder em busca da felicidade, material ou espiritual. É o ser que nos intimida e impõe de um lado; consola e dá esperança de outro. Não o encontramos dentro de nós; ele está em algum lugar, vigilante, ao mesmo tempo orientador e punitivo.
A codificação kardecista explica que Ele é a origem de tudo; tudo que não tem o toque do homem na sua criação é obra de Deus. E por suas consequências naturais, maravilhosas e harmônicas, Deus é “a causa sem causa” de todos os seus atributos. De um modo geral, o que não conseguimos explicar colocamos na conta de Deus: de onde viemos, para onde vamos, qual o sentido da vida e, principalmente, a inteligência original nas leis universais (naturais e morais). Deus, não o vemos, conhecemos ou entendemos, mas ele se afirma e revela por suas obras.
Por sua vez, as leis universais (também chamadas naturais ou divinas) – de adoração, do trabalho, de reprodução, de conservação, de destruição, de sociedade, de progresso, de igualdade, de liberdade, de justiça, amor e caridade-, segundo a Doutrina Espírita, estão inscritas em nossa consciência e que na medida que evoluirmos moralmente podemos descobri-las. Fundamentadas nos 10 mandamentos de Moisés – os quais foram diretamente ditados a ele por Deus, ratificadas por Cristo e esclarecidas pelos Espíritos Superiores-, as leis são o caminho seguro para o progresso material, intelectual e moral do indivíduo, bem como para sua felicidade e, como consequência, para a harmonia da sociedade. Ademais, o mal e a infelicidade existem não por falha divina mas devido à imperfeição humana no que se refere à compreensão dessas mesmas leis.
Durante as encarnações, o homem, baseando-se nas leis naturais (universais ou divinas), experimenta-se e deve concentrar-se na busca do progresso moral e no encontro de sua própria consciência quando, ao conhecer-se a si próprio, entende suas imperfeições e pode corrigi-las. Não obstante o progresso que já alcançamos, Deus, embora não pareça ser mais tão punitivo como fora, ainda pode nos significar algo externo, heterônomo(1) aos homens, que dita um modo de ser e agir e que, no caso de “desobediência”, também prescreve as consequências possíveis, as quais, num contexto de desarmonia e infelicidade, resultam como freios ao agir, sentir e pensar.
“A providência é a solicitude de Deus para com todas as criaturas. Deus está por toda parte, tudo vê e a tudo preside, mesmo as pequenas coisas; e é nisso que consiste sua ação providencial”.(2.) Nossas faculdades e percepções limitadas não nos permitem compreender a infinitude de Deus e que, ao mesmo tempo, possa intervir nas mínimas coisas. Mas, de um jeito muito limitado, podemos admitir que, sendo infinito, Deus está em todas as coisas e mesmo em nós e que, desse modo, de alguma sorte possuímos os atributos essenciais da divindade, mesmo que latentes e imperfeitos. Então, a fortuna ou desgraça são ao mesmo tempo resultado de nossa ação individual (livre-arbítrio) combinada com a ação de Deus, na medida que nos exercitemos ou não na trilha definida pelas leis divinas.
Dito isto, podemos perguntar: é necessário acreditar e cultuar a Deus depois que o homem entender as leis naturais e as praticar de modo instintivo e desinteressado? Se, por um lado, cultuamos um Deus heterônomo, o qual nos determina o caminho a ser seguido (as leis naturais) e as consequências do afastamento dele (a infelicidade), por outro, na medida que o homem se esclarece e se exercita nessas leis, progride moralmente, aproxima-se da sua própria consciência, convence-se e admite o dever de cumpri-las, cada vez menor torna-se a importância e necessidade do Deus externo (e punitivo). Como resultado, encaminha-se então o homem ao Deus íntimo e, segundo a perfeição alcançada, passa a agir, pensar e sentir de modo autônomo, sem necessitar de balizares e freios exteriores. Nesse sentido, o homem bastaria a si próprio na busca/encontro da felicidade.
A respeito da frase do título, poderíamos então concluir que ao encontrarmos a nós mesmos em nossa própria consciência (onde estão inscritas as leis divinas, das quais intuímos naturalmente), o Deus heterônomo torna-se supérfluo e por isso dispensável. Findo o Deus externo, resta apenas o Deus presente internamente, que se confunde (ainda que distinto) com o próprio homem e de sua íntima consciência emanariam o amor, a justiça e a caridade, natural e espontaneamente. O personagem do filme Um homem de sorte encontrou a si próprio e as dores que sentia era resultado de sua própria consciência; era a parte de Deus em seu interior advertindo-o de suas faltas perante as leis divinas. O medo, a frustração, a inveja, a angústia, em uma palavra, os males que o infortunavam, não eram mais algo a ser remediado por uma benção de um “pai” protetor e indulgente; eram questão dele para com ele balizada pelo entendimento e reconhecimento íntimo que as mazelas sentidas eram em virtude de suas próprias ações e modo de entender a vida. A voz de Deus em sua consciência, agora mais lúcida, usava o sofrimento para falar e indicar-lhe que estava no caminho errado. O personagem aprendeu a conhecer a si próprio e encontrou, nele mesmo, Deus.
Para saber mais sobre a Doutrina Espírita Kardecista sugiro o Livro dos Espíritos, de Allan Kardec.
(1) Heteronomia (do grego heteros, “diversos” + nomos, “regras”) é um conceito criado por Kant para denominar a sujeição do individuo à vontade de terceiros ou de uma coletividade. Se opõe assim ao conceito de autonomia onde o ente possui arbítrio e pode expressar sua vontade livremente (Wikipedia).
(2) Kardec, Allan. A Gênese – Os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo. Brasília: FEB, 2013, p. 55.