Conforme dispõe a própria Constituição Federal brasileira, a educação consiste em um direito social (art. 6º, caput), além do que, sendo considerada “direito de todos e dever do Estado e da família”, de acordo com o art. 205, também “será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1988).
Diante disso, em tempos particularmente recentes, suscitou-se o debate referente ao ensino domiciliar, uma modalidade educativa em que a família, e não o Estado, assumiria o protagonismo na educação (ou instrução) de suas crianças e adolescentes. Importa anotar que tal discussão foi levada ao Supremo Tribunal Federal, que, no Recurso Extraordinário n. 888.815/RS, decidiu, em suma, o que a seguir se transcreve:
Ementa: CONSTITUCIONAL. EDUCAÇÃO. DIREITO FUNDAMENTAL RELACIONADO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E À EFETIVIDADE DA CIDADANIA. DEVER SOLIDÁRIO DO ESTADO E DA FAMÍLIA NA PRESTAÇÃO DO ENSINO FUNDAMENTAL. NECESSIDADE DE LEI FORMAL, EDITADA PELO CONGRESSO NACIONAL, PARA REGULAMENTAR O ENSINO DOMICILIAR. RECURSO DESPROVIDO. 1. A educação é um direito fundamental relacionado à dignidade da pessoa humana e à própria cidadania, pois exerce dupla função: de um lado, qualifica a comunidade como um todo, tornando-a esclarecida, politizada, desenvolvida (CIDADANIA); de outro, dignifica o indivíduo, verdadeiro titular desse direito subjetivo fundamental (DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA). No caso da educação básica obrigatória (CF, art. 208, I), os titulares desse direito indisponível à educação são as crianças e adolescentes em idade escolar. 2. É dever da família, sociedade e Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, a educação. A Constituição Federal consagrou o dever de solidariedade entre a família e o Estado como núcleo principal à formação educacional das crianças, jovens e adolescentes com a dupla finalidade de defesa integral dos direitos das crianças e dos adolescentes e sua formação em cidadania, para que o Brasil possa vencer o grande desafio de uma educação melhor para as novas gerações, imprescindível para os países que se querem ver desenvolvidos. 3. A Constituição Federal não veda de forma absoluta o ensino domiciliar, mas proíbe qualquer de suas espécies que não respeite o dever de solidariedade entre a família e o Estado como núcleo principal à formação educacional das crianças, jovens e adolescentes. São inconstitucionais, portanto, as espécies de unschooling radical (desescolarização radical), unschooling moderado (desescolarização moderada) e homeschooling puro, em qualquer de suas variações. 4. O ensino domiciliar não é um direito público subjetivo do aluno ou de sua família, porém não é vedada constitucionalmente sua criação por meio de lei federal, editada pelo Congresso Nacional, na modalidade “utilitarista” ou “por conveniência circunstancial”, desde que se cumpra a obrigatoriedade, de 4 a 17 anos, e se respeite o dever solidário Família/Estado, o núcleo básico de matérias acadêmicas, a supervisão, avaliação e fiscalização pelo Poder Público; bem como as demais previsões impostas diretamente pelo texto constitucional, inclusive no tocante às finalidades e objetivos do ensino; em especial, evitar a evasão escolar e garantir a socialização do indivíduo, por meio de ampla convivência familiar e comunitária (CF, art. 227). 5. Recurso extraordinário desprovido, com a fixação da seguinte tese (TEMA 822): “Não existe direito público subjetivo do aluno ou de sua família ao ensino domiciliar, inexistente na legislação brasileira”. (RE 888815, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Relator(a) p/ Acórdão: ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 12/09/2018, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-055 DIVULG 20-03-2019 PUBLIC 21-03-2019)
Neste caso, a Suprema Corte brasileira decidiu que o chamado ensino domiciliar não é um direito subjetivo do aluno ou de sua família, uma vez que essa modalidade de ensino e aprendizagem não existe na legislação do nosso País. Todavia, a própria Corte reconheceu que a inexistência expressa desse pretenso direito não significa, a um só tempo, a impossibilidade, constitucional ou legal, do Poder Legislativo regulamentar a matéria, desde que, conforme se advertiu, cumpra-se “a obrigatoriedade, de 4 a 17 anos, e se respeite o dever solidário Família/Estado, o núcleo básico de matérias acadêmicas, a supervisão, avaliação e fiscalização pelo Poder Público; bem como as demais previsões impostas diretamente pelo texto constitucional, inclusive no tocante às finalidades e objetivos do ensino; em especial, evitar a evasão escolar e garantir a socialização do indivíduo, por meio de ampla convivência familiar e comunitária” (BRASIL, 2019, p. 1).
Dito de outro modo, pela leitura que se faz do julgado em questão, o ensino domiciliar no Brasil não é expressamente proibido, sendo apenas não regulamentado para que seja de fato exercido pelas famílias como um direito subjetivo, ou seja, um direito que, a qualquer momento, possa ser juridicamente exigido por aqueles que estiverem eventualmente interessados na prática deste processo distinto da dita escolarização tradicional, que é desempenhada nas tradicionais instituições de ensino.
Interessante lembrar que o Supremo Tribunal tratou a educação como um direito fundamental que compreende dois aspectos complementares da vida cívica, quais sejam, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Assim, a partir do reconhecimento inconteste do direito fundamental à educação, educa-se para que as pessoas possam atuar na comunidade de forma mais esclarecida e qualificada, com o objetivo de melhor atender, legitimamente, aos anseios e interesses sociedade.
Referências:
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 11 jun. 2023.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Recurso Extraordinário n. 888.815/RS. Tribunal Pleno, Relator: Min. Roberto Barroso, Julgamento: 12/09/2018, Publicação: 21/03/2019. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749412204. Acesso em: 11 jun. 2023.