A Constituição Federal brasileira1, de 1988, organiza o Estado e declara uma série de direitos fundamentais, unificadores de valores e princípios sociais, sendo que o seu art. 5º ocupa posição de destaque nesse contexto de previsão e resguardo de garantias e liberdades destinadas ao cidadão.
Em se tratando de direitos a serem exercidos no bojo de um processo penal, em que o cidadão é formalmente acusado pela suposta prática de crime, o Texto Maior, no art. 5º, inciso LV, dispõe sobre o denominado princípio do contraditório e da ampla defesa, apresentado textualmente nos seguintes termos, verbis:
“LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os recursos e meios a ela inerentes”.
Desse princípio genérico, extrai-se outras disposições, entre as quais está o direito ao silêncio, abaixo transcrito:
“LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”.
Nesse sentido, “permanecer calado” nada mais é que o exercício da chamada defesa pessoal ou autodefesa2, que consiste, a par da defesa técnica, exercida por advogado, na possibilidade de o indiciado ou acusado, preso ou não, defender-se pessoalmente perante as imputações criminais que lhe são direcionadas oficialmente pelo Estado.
Essa possibilidade jurídica não é prevista tão somente no texto da Constituição brasileira, mas, também, em documentos internacionais, a fim de proteger e promover direitos humanos, conforme se percebe a partir das textualidades abaixo mencionadas.
A título de exemplo, cite-se o disposto na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, observada no Brasil em razão do Decreto nº 6783, de 6 de novembro de 1992, que, ao tratar das garantias judiciais, no art. art. 8º, item 2, alínea “d”, prega estes termos:
2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: […] d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor.
Nesse mesmo sentido está o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, em vigor no Brasil por intermédio do Decreto nº 5924, de 6 de julho de 1992. Em seu art. 14, item 3, alínea “d”, tem-se a seguinte redação:
3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, a, pelo menos, as seguintes garantias: […] d) De estar presente no julgamento e de defender-se pessoalmente ou por intermédio de defensor de sua escolha; de ser informado, caso não tenha defensor, do direito que lhe assiste de tê-lo e, sempre que o interesse da justiça assim exija, de ter um defensor designado ex-offício gratuitamente, se não tiver meios para remunerá-lo.
Porém, no Brasil, em situações pontuais de flagrante violação de direito fundamental e desrespeito a prerrogativas de advogado, vê-se que o direito ao silêncio tem sido equivocadamente interpretado como uma espécie de tudo ou nada no processo-crime, sendo negada ao acusado a oportunidade de silenciar ante às perguntas feitas pelo Estado e responder apenas aos questionamentos formulados pelo defensor, no exercício da defesa técnica.
Tal negativa do Estado revela uma afronta ao direito ao contraditório e à ampla defesa, sendo, portanto, uma transgressão da própria Constituição. E, não bastasse a clareza e a amplitude da defesa constitucionalmente assegurada ao acusado, preso ou não, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se manifestou a respeito da matéria.
No Habeas Corpus nº 703.978/SC5, o STJ decidiu que “o interrogatório, como meio de defesa, implica ao imputado a possibilidade de responder a todas, nenhuma ou a apenas algumas perguntas direcionadas ao acusado, que tem direito de poder escolher a estratégia que melhor lhe aprouver à sua defesa”, sendo a “oportunidade na qual deve ser-lhe assegurado o direito ao silêncio (total ou parcial), respondendo às perguntas de sua defesa técnica, e exercendo diretamente a ampla defesa.
Ainda, no Resp. nº 1.825.622/SP6, o STJ asseverou que o interrogatório é a única oportunidade que o acusado possui “[…] de responder às perguntas que quiser responder, de modo livre, desimpedido e voluntário”.
Então, percebe-se que o direito ao silêncio é um direito fundamental, previsto na Constituição da República, assim como se trata de um direito humano, resguardado por declarações internacionais de direitos. Ademais, na condição de expressão do contraditório e da ampla defesa, o direito ao silêncio parcial, ou seletivo, é perfeitamente compatível com a ordem constitucional brasileira, conforme se observa a partir dos pronunciamentos esclarecedores do STJ, também conhecido como Tribunal da Cidadania.
Referências:
1BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB): promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 9 de abril de 2022.
2LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 112.
3BRASIL. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992: promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em: 10 de abril de 2022.
4BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992: Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em: 14 de maio de 2022.
5BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). HC nº 703.978/SC. Sexta Turma, Relator: Ministro Olindo Menezes (desembargador convocado do TRF 1ª Região), Julgamento: 05/04/2022, Publicação: 07/04/2022. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=703978&b=ACOR&p=false&l=10&i=1&operador=E&tipo_visualizacao=RESUMO. Acesso em: 7 de maio de 2022.
6BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Recurso especial nº 1.825.622/SP. Sexta Turma, Relator: Ministro Rogério Schietti Cruz, Julgamento: 20/10/2020, Publicação: Publicação: 28/10/2020. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=1825622&b=ACOR&p=false&l=10&i=4&operador=E&tipo_visualizacao=RESUMO. Acesso em: 7 de maio de 2022.