Por: Caique Nobre
Neste artigo pretendo explicar os conceitos fundamentais de “Hard e Easy Money”, fundamentais para a compreensão das razões que tornam um dinheiro bom ou ruim, além de mencionar exemplos ao longo da história. Para facilitar a compreensão, sugiro fortemente a leitura prévia do artigo “Moeda: o que é e quais suas funções de mercado”.
O termo em inglês “hardness” significa dureza, logo, um “Hard Money” seria um tipo de dinheiro “duro/resistente”. Segundo Ammous (2018, p. 20), o que determina a dureza do dinheiro seria a dificuldade relativa para a criação de novas unidades monetárias, em relação à quantidade já existente.
Sendo assim, um dinheiro cuja criação de novas unidades monetárias seja difícil poderia ser denominado “Hard Money” (dinheiro difícil/duro), enquanto um “Easy Money” (dinheiro fácil/frágil) seria aquele cujo aumento da oferta monetária seria relativamente fácil.
Para facilitar a compreensão, é necessário abordar dois conceitos econômicos fundamentais:
a) Estoque (Stock): A oferta já existente e em circulação de determinado bem, equivalendo a tudo o que já foi produzido menos o que já foi consumido/destruído;
b) Fluxo (Flow): Produção extra de novas unidades de determinado bem.
A relação estoque-fluxo (stock-to-flow) também é fundamental. Se ela for alta, significa que o fluxo de criação de novas unidades de dinheiro é baixo em relação ao estoque, configurando um bom exemplo de Hard Money (dinheiro difícil/resistente). Em contrapartida, se essa relação for baixa, o fluxo de novas unidades é alto em relação ao estoque já existente, incorrendo na característica de Easy Money (dinheiro fácil/frágil). Os primeiros são preferíveis aos segundos, pois permitem aos indivíduos que o valor retido em suas poupanças tenda a se manter ou até a se apreciar no futuro. Easy Money é exatamente o dinheiro fiduciário cujo lastro está nas mãos dos operadores do BC. Um bom dinheiro deve ser difícil de ser produzido.
Exemplos: se houvesse uma tentativa de utilizar madeira como moeda, facilmente outras pessoas poderiam criar moedas desse material, o que provavelmente faria com que ele perdesse seu valor rapidamente. Já bens que possuam uma alta relação estoque-fluxo poderiam (e foram) utilizados como moeda. O exemplo clássico é o ouro, metal cuja produção de novas unidades é uma das mais difíceis que existem.
A seguir, serão descritos alguns dos bens que foram utilizados como moeda ao longo da história, por em determinado momento terem possuído alta relação estoque-fluxo
Rai Stones – Yap (Micronésia)
Essas moedas de pedra gigantes foram muito utilizadas na região de Yap, Micronesia. Sua beleza e raridade encantaram os nativos de Yap e, por seu processo de fabricação ser difícil (desde seu transporte até sua lapidação), por certo tempo a essas moedas era conferido o status de “Hard Money”.
Como as tribos eram relativamente pequenas, sendo compostas por apenas algumas dúzias de pessoas, todos sabiam quem eram os donos daquelas moedas gigantes, o que tornava inviável qualquer tentativa de roubo. Para efetuar um pagamento, bastava ao dono anunciar a transação às pessoas ou mesmo registrá-la na própria pedra.
Por milênios esse tipo de dinheiro prevaleceu na região de Yap. Como as negociações estavam restritas apenas à região da ilha, as moedas mantiveram sua vendabilidade (salability) através do espaço. Como era possível efetuar pagamentos através de frações da mesma moeda, foi possibilitada sua vendabilidade através de escalas (proporções). Pelo tempo, o fato de as moedas não se deteriorarem permitiu que se conservasse sua vendabilidade também nessa dimensão.
Até aqui, as Rai Stones tinham uma alta relação estoque-fluxo, pois o trabalho de criação e transporte dessas moedas era extremamente difícil e as novas moedas não representavam grande quantidade em relação ao estoque já existente.
Essa foi a realidade até 1871, quando O’Keefe, um marinheiro americano-irlandês, atracou na ilha com sua tripulação. De súbito, decidiu realizar uma operação empreendedora envolvendo cocos e extração de seu óleo para revenda, mas os nativos não estavam interessados em seu dinheiro estrangeiro para trabalhar. Sendo assim, O’Keefe foi até a ilha de Guam, onde eram fabricadas as Rai Stones, e com o uso de explosivos fabricou diversas moedas de pedra. Apesar de o líder dos Yapeses não ter permitido a aceitação dessas moedas, por não terem sido feitas pelo “sangue e suor do povo” (ou seja, se tornou um Easy Money), alguns nativos desobedeceram a ordem, o que resultou em conflitos e na diminuição do estoque-fluxo das pedras sagradas como moeda.
Hoje, essas pedras são utilizadas apenas em eventos e rituais simbólicos da tradição Yapese.
Gado e Sal
Outra moeda antiga foi o gado, cujo valor estava relacionado ao seu valor nutricional. Possuía certa mobilidade, o que o tornava vendável no espaço, mas não tanto em relação em termos de escala (proporcionalidade) e no tempo, pois como moeda estava limitado ao tempo de vida dos animais. No mesmo período, o sal também foi utilizado como moeda, pois era facilmente divisível em escalas, fácil de transportar e durava muito tempo.
Como curiosidade, os termos etimológicos do latim de “gado e sal” (pecus e sal) originaram os termos “pecuniário” e “salário”, utilizados até hoje.
Pedras Aggry (Miçangas)
Por séculos essas pedras, até então tidas como “preciosas”, serviram como instrumento monetário na África Ocidental, onde a tecnologia de fabricação de derivados de vidro ainda não era bem desenvolvida. Isso garantia que seu processo de fabricação fosse difícil e assegurava sua raridade relativa, caracterizando uma alta relação estoque-fluxo.
Quando os europeus ali chegaram no século XVI, perceberam que os africanos valorizavam sobremaneira um material que era de fácil fabricação na Europa. Isso gerou uma importação massiva desses materiais europeus pelos migrantes que estavam na África, que os utilizariam na troca por outros bens que os europeus já conheciam ter valor superior (no caso, outras pedras preciosas).
Como consequência, essa incursão europeia diminuiu lentamente a relação estoque-fluxo dessas miçangas, perturbando fortemente as relações econômicas daquela região e transferindo riqueza dos africanos para os europeus. Um ponto fundamental é que isso ocorreu lentamente, o que é mais perigoso do que quando as pessoas percebem de pronto que a moeda deverá ser rapidamente substituída por outra. Quando os africanos perceberam isso, já era tarde demais.
Conchas
O mesmo ocorreu com as conchas, que no século XVII eram utilizadas como moeda tanto na África, quanto na América do Norte e Ásia. A tecnologia da época não permitia que a obtenção de conchas fosse fácil para os nativos, o que garantiu por certo tempo uma alta relação estoque-fluxo. Mas isso mudou conforme os avanços tecnológicos marítimos as tornaram menos difícil de serem encontradas. O resultado foi sua substituição por moedas metálicas.
Moedas Metálicas
Conforme a metalurgia avançou, moedas metálicas passaram a ser utilizadas. Devido às suas propriedades químicas e facilidade de extração, alguns metais eram mais valorizados que outros. Cobre e ferro são metais muito mais abundantes do que ouro e prata, além de oxidarem facilmente.
Foram justamente as propriedades químicas e a maior dificuldade de mineração que fizeram com que o ouro se tornasse o metal preferido para ser utilizado como moeda. Na competição entre moedas metálicas, “o vencedor leva tudo”. Essas propriedades do ouro também possibilitaram seu uso como reserva de valor, fazendo com que o horizonte temporal das pessoas se estendesse pelo longo prazo (redução da preferência temporal) e que houvesse maior acúmulo de capital e poupança voluntária.
Ao permitir a padronização de unidades monetárias, o uso de moedas metálicas criou maiores mercados e incentivou a especialização e divisão do trabalho em níveis sem precedentes. Ainda assim, governos depreciavam a moeda a partir da clipagem, processo que consistia em reduzir a quantidade de ouro da moeda.
A prata foi utilizada como padrão monetário na China e na Índia. Em locais onde predominava o padrão-ouro, ela era utilizada como opção para realizar transações menores. Porém, como ela é suscetível à corrosão e é menos difícil de ser produzida, possuía certas limitações. Com o advento do papel-moeda lastreado em ouro, no século XVIII, a prata perdeu sua função no mercado.
Papel-moeda (lastreado em ouro)
No século XVIII, a Grã-Bretanha foi a primeira nação a adotar o padrão-ouro, sob a diretriz de Isaac Newton. Esse padrão durou até o período das Guerras Napoleônicas (1797-1821) e, após esse período, até a 1ª GM. O sucesso econômico do Império Britânico estava intrinsecamente ligado ao correto uso do padrão-ouro, permitindo que fosse gerenciado de modo eficiente ainda que sua extensão territorial fosse a maior de todos os impérios da história.
Foram particularmente duas invenções do século XIX que contribuíram para escalar o papel-moeda lastreado em ouro: o telégrafo e as linhas de trens, que facilitaram a comunicação e a logística por toda a Europa. A partir daí, os bancos podiam se comunicar melhor as transações entre si e os indivíduos também puderam transportar riqueza em notas promissórias e cheques de pagamento.
Será dedicado um artigo posterior especificamente sobre padrão-ouro, devido à sua grande importância histórica.
Bancos Centrais
No início do século XX surgiram os Bancos Centrais, entidades estatais responsáveis por “controlar” a oferta monetária. Com o intuito de financiar gastos governamentais, como guerras, ao longo do século passado todos os governos abandonaram aos poucos o lastro do padrão-ouro, aumentando exponencialmente a oferta de papel-moeda, depreciando seu valor e tornando-o definitivamente um “Easy Money”.
Esse descontrole da oferta monetária, segundo Ammous (p. 53-83), foi a principal causa de tantas guerras e crises econômicas do século XX. Porém, isso será abordado com mais detalhes em outro artigo.
Dinheiro Digital
A primeira tentativa de se criar um dinheiro digital ocorreu nos anos 1980, partindo do cientista e criptógrafo David Chaum, criador do eCash. Porém, sua criação não foi bem-sucedida. Talvez a principal dificuldade de se criar um ativo digital é conferir-lhe escassez, pois sua replicação em grandes quantidades é extremamente fácil. Contudo, esse problema foi finalmente resolvido em 2009, com o surgimento do Bitcoin.
O Bitcoin foi o primeiro ativo digital com escassez absoluta, e isso só foi possível após Nakamoto combinar as tecnologias de hashing, assinaturas digitais e prova de trabalho (proof-of work) (AMMOUS, 2017. p.176 e 200). Sua oferta monetária foi programada para não ultrapassar 21 milhões de unidades, sendo que a taxa de inflação é reduzida pela metade sempre que novos 210.000 blocos são minerados, o que ocorre em média a cada 4 anos. Logo, cada vez menos unidades monetárias são criadas em relação à oferta já existente. É justamente essa escassez absoluta possibilita que o Bitcoin pudesse ser considerado um Hard Money. Caso o leitor deseje compreender melhor o Bitcoin e suas possibilidades, recomendo a leitura deste artigo.
Conclusão
Para que uma commodity desempenhe bem as funções de moeda, é fundamental que ela possua “dureza” (hardness), ou seja, que não seja possível um aumento excessivo de sua oferta (fluxo) no momento que sua demanda aumentar radicalmente. Foi justamente por isso (alta relação estoque-fluxo) que o ouro foi um dos principais metais utilizados como bem-intermediário (ou mesmo lastro) nas transações ao longo da história.
Apesar de o governo ter monopolizado as reservas de ouro e abandonado oficialmente seu padrão em 1971, felizmente hoje possuímos um ativo digital e descentralizado com uma alta relação estoque-fluxo: o Bitcoin. Resta agora saber se esse ativo digital também desempenhará eficientemente as funções de moeda, o que ainda teremos que aguardar para descobrir.
Referências
AMMOUS, S. The Bitcoin Standard – The Decentralized Alternative to Central Banking. New Jersey: Wiley, 2018