No Brasil, o instituto técnico-jurídico da legítima defesa, tal como concebido no Código Penal, possui requisitos de configuração bastante claros, sendo tais elementos constitutivos de ordem objetiva, relacionados às circunstâncias de fato e de ação humana, assim como a exigência subjetiva, referente à seara psicológica do sujeito por ocasião da conduta defensiva empregada com o objetivo de repelir agressão injusta, quer atual ou iminente, contra direito próprio ou alheio, valendo-se, para tanto, do uso moderado dos meios necessários.
Porém, considerada a finalidade de tutelar bem jurídico, próprio ou alheio, o mesmo instituto penal já fora utilizado para salvaguardar o direito à honra em casos de extrema gravidade, como, por exemplo, feminicídio e violência doméstica e familiar, notadamente em circunstâncias de traições no âmbito de relações amorosas. Nesse contexto, utilizou-se da chamada legítima defesa da honra, de modo que concepções convencionais de moralidade sobrepujaram até mesmo o direito à vida e à integridade física, mormente na seara de julgamento pelo tribunal do júri, em que jurados decidem soberanamente e sem obrigatoriedade de fundamentação do decisum popular.
Da legítima defesa da honra: uma síntese dos fundamentos presentes na ADPF nº 779/DF
No dia 15 de março de 2021, por unanimidade, os Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), em sessão virtual do Plenário, referendaram a concessão parcial de medida cautelar na arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) nº 779, do Distrito Federal, para assentar o entendimento de que a tese legítima defesa da honra é inconstitucional, visto contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero, além de conferir interpretação conforme à constituição aos arts. 23, II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal (CP), e ao art. 65 do Código de Processo Penal (CPP), rechaçando a tese da legítima defesa da honra, de modo a excluí-la da verdadeira configuração do instituto da legítima defesa.
No mais, os ministros da Suprema Corte também acordaram em impedir à defesa, à acusação, à autoridade policial e ao juízo que utilizem, de forma direita ou indireta, a referida tese de legítima defesa da honra (assim como qualquer outro argumento que induza à citada tese) nas fases pré-processual ou processual penais e durante o julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de se caracterizar a nulidade do ato e do julgamento.
De todo modo, importa esclarecer a definição da legítima defesa, a fim de identificar os motivos pelos quais a aplicação de tal instituto para a proteção exclusiva da honra não é mais admitida no Direito brasileiro, tendo em vista os valores e princípios previstos na Constituição Federal e compartilhados pela sociedade contemporânea.
Em verdade, segundo Nucci (2019), a legítima defesa consubstancia o reconhecimento, por parte do Estado, de um direito natural, previsto no Código Penal, atualmente, como causa justificadora de condutas consideradas típicas, ou seja, presumivelmente ilícitas. E essa compreensão histórico-social de um direito originariamente natural implica reconhecer o caráter indeclinável e irrefreável do instinto humano de autopreservação, que fala muito mais alto do que qualquer normativa burocrática tendente a regular as relações sociais a partir de prospecções abstratas do legislador acerca de acontecimentos futuros.
A respeito da finalidade da existência do referido instituto penal, percebe-se que há razões suficientes para se sustentar a permanência de tal permissão legal no bojo da legislação infraconstitucional, considerando-se, inclusive, que a legítima defesa apresenta dupla fundamentação: “de um lado, a necessidade de defender bens jurídicos perante uma agressão; de outro, defender o próprio ordenamento jurídico, que se vê afetado ante uma agressão ilegítima” (BITENCOURT, 2019, p. 160).
Eis, pois, a previsão da legítima defesa no Código Penal pátrio, que, ao versar sobre as hipóteses legais de exclusão de ilicitude, expõe o referido instituto como uma das quatro causas justificadoras, in verbis: “Art. 23 – Não há crime quando o agente pratica o fato: […] II – em legítima defesa” (BRASIL, 1940). Assim sendo, tem-se que essas causas excludentes de antijuridicidade “excluem a configuração de um crime, e, consequentemente, afastam a aplicação da lei penal, tendo em vista a condição específica em que foi praticado determinado fato típico” (BRASIL, 2021, p. 14).
Demais disso, assevera o art. 25, do Código Penal, os seguintes termos: “Art. 25 – Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. Parágrafo único. Observados os requisitos previstos no caput deste artigo, considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes” (BRASIL, 1940).
Frise-se que, para repelir a injusta agressão contra direito próprio ou alheio, devem ser utilizados os meios considerados necessários, além da ressalva legal de que esse uso há de ser moderado, proporcional, uma vez que, “ao dispor sobre o uso moderado dos meios necessários, o Código Penal está a estabelecer a proibição do excesso, no sentido de que a defesa deve consistir no uso de meios proporcionais à agressão, ou seja, suficientes para repeli-la” (BRASIL, 2021, p. 15-16).
Isso não significa, porém, num contexto que forneça guarida à legítima defesa, que se deve constatar uma equivalência exata, quase matemática, entre as proporções de (comportamento e) violência empreendidas e aferíveis quando do confronto entre bens jurídicos de titulares distintos, ainda que em posições antagônicas do que diga respeito à legalidade, ou não, de cada conduta, na medida em que, com efeito, pretende-se registrar que “não pode haver uma desproporção muito grande entre a conduta defensiva e a do agressor, de maneira que a primeira cause um mal imensamente superior ao que teria produzido a agressão” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011, p. 507).
Segundo Capez (2013, p. 309-310), a despeito de vários direitos serem suscetíveis de legítima defesa, tais como a vida, a liberdade pessoal, a integridade física, o patrimônio, a honra etc., bastando, para tanto, a tutela da ordem jurídica, consigne-se que “o que se discute não é a possibilidade da legítima defesa da honra e sim a proporcionalidade entre a ofensa e a intensidade da repulsa”.
Assim sendo, “[…] não poderá, por exemplo, o ofendido, em defesa da honra, matar o agressor, ante a manifesta ausência de moderação. No caso do adultério, nada justifica a supressão da vida do cônjuge adúltero, não apenas pela falta de moderação, mas também devido ao fato de que a honra é um atributo de ordem personalíssima, não podendo ser considerada ultrajada por um ato imputável a terceiro, mesmo que este seja a esposa ou o marido do adúltero” (CAPEZ, 2013, p. 309-310).
Em virtude disso, “salta aos olhos que a ‘legítima defesa da honra’, na realidade, não configura legítima defesa” (BRASIL, 2021, p. 16). Nesse ínterim, conforme expõe o relator, Ministro Dias Toffoli, a traição se encontra inserida no contexto das relações amorosas, sendo que tanto os homens quanto as mulheres podem, a qualquer momento, praticá-la ou sofrê-la. Assim, não se verifica o desvalor da traição no âmbito estritamente jurídico, mas, sim, no campo da ética e da moral, não se podendo falar em direito subjetivo de agir com violência contra a pessoa que praticou o comportamento adúltero (BRASIL, 2021).
Por isso, de acordo com o STF, a alegação de legítima defesa da honra não passa de um instrumento retórico, ou seja, um recurso de argumentação, que, no entender do Ministro Dias Toffoli, trata-se, em verdade, de mais um estratagema discursivo “odioso, desumano e cruel utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões, contribuindo […] para a naturalização e a perpetuação da cultura da violência […]” (BRASIL, 2021, p. 18).
Dessa forma, estabeleceu-se com a ADPF nº 779/DF, particularmente na esteira do voto do Ministro Relator Dias Toffoli, que, apesar da existência da garantia da plenitude de defesa no contexto de tribunal do júri, permitindo a utilização de argumentos jurídicos e não jurídicos, tais como argumentos sociológicos, políticos e até morais, “[…] para além de um argumento atécnico e extrajurídico, a ‘legítima defesa da honra’ é estratagema cruel, subversivo da dignidade da pessoa humana e dos direitos à igualdade e à vida e totalmente discriminatória contra a mulher, por contribuir com a perpetuação da violência doméstica e do feminicídio no país” (BRASIL, 2021, p. 26).
Nesse sentido, tem-se “[…] a prevalência da dignidade da pessoa humana, da vedação a todas as formas de discriminação, do direito à igualdade e do direito à vida sobre a plenitude da defesa, tendo em vista os riscos elevados e sistêmicos decorrentes da naturalização, da tolerância e do incentivo à cultura da violência doméstica e do feminicídio” (BRASIL, 2021, p. 28).
Assim sendo, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida, à integridade, assim como a vedação de discriminação de gênero, baseada na igualdade constitucionalmente prevalecente entre homens e mulheres, impossibilitam a aplicação da tese de legítima defesa da honra “como argumento jurídico ou não jurídico inerente à plenitude de defesa própria do Tribunal do Júri” (BRASIL, 2021, p. 27).
Logo, ao se sopesar bens jurídicos tutelados pela Constituição de 1988 e pela legislação infraconstitucional, infere-se que a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e à integridade física e moral, bem como a vedação a qualquer espécie de discriminação indevida, são valores cuja relevância se sobrepõe à honra de qualquer pessoa, homem ou mulher, ainda que também seja um direito legalmente protegido, mas não a ponto de sobrepujar todos os demais princípios e vetores constitucionais justificadores da proteção incondicional à integralidade do ser humano.
Créditos da imagem: Wallace Martins/Esp. CB/D.A Press
Referências
BITENCOURT, Cezar Roberto. Código penal comentado. 10. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
BRASIL. Código Penal. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: encurtador.com.br/dswO9. Acesso em: 6 de novembro de 2021.
BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Disponível em: encurtador.com.br/ELNQ5. Acesso em: 6 de novembro de 2021.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: encurtador.com.br/jtGQ2. Acesso em: 6 de novembro de 2021.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Referendo na medida cautelar na arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) nº 779, do Distrito Federal. Tribunal Pleno, Relator: Ministro Dias Toffoli, Julgamento: 15/03/2021, Publicação: 20/05/2021. Disponível em: encurtador.com.br/auwK5. Acesso em: 6 de novembro de 2021.
CAPEZ, Fernando. Execução penal. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito penal: parte geral: arts. 1º a 120 do Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.