“O dinheiro é belo porque é a libertação”
(Fernando Pessoa)
O dinheiro, que surgiu como um instrumento facilitador das trocas e, por consequência, dinamizador da divisão do trabalho e da própria evolução da civilização, aos poucos foi corrompido e perdeu algumas de suas qualidades, notadamente a capacidade de reserva de valor, como efeito da inflação promovida por governos e sistemas bancários. O Bitcoin então emerge como uma possibilidade de resgate desse atributo (da reserva de valor) dado que possui as características fundamentais originais do dinheiro.
Para efeito deste texto, utilizaremos os termos dinheiro e moeda como sinônimos, embora haja diferenças conceituais entre eles, as quais não serão exploradas aqui.
O homem, em seu processo de civilização, obteve nas trocas voluntárias um instrumento para melhorar o seu bem-estar, levadas em conta as diferenças individuais e geográficas. Cada indivíduo possui habilidades pessoais e, ao misturá-las e combiná-las com os recursos naturais específicos do lugar onde habita, resulta disso que determinadas pessoas (ou comunidades) são melhores produtores de específicos bens que outras. Assim, a troca direta (escambo) entre indivíduos e comunidades tornou-se base essencial da vida econômica porque ambas as partes envolvidas esperavam obter benefícios das transações, das trocas. Conforme Rothbard (2013, p. 13, grifos do original):
Por que a propensão a transacionar é algo tão universal na humanidade? Fundamentalmente, por causa da grande variedade existente na natureza: a variedade que há nos homens e a variedade e a diversidade da localização dos recursos naturais.
Embora permitisse algo melhor que as atividades autossuficientes (quando o indivíduo procura obter sozinho tudo o que necessita para sobreviver), o escambo encontrava barreiras para as transações, em especial a “coincidência de interesses” e a “indivisibilidade”, permitindo uma quantidade muito pequena de trocas:
Assim, se o senhor Silva tem um arado que ele gostaria de trocar por várias coisas diferentes – por exemplo ovos, pães e uma muda de roupas -, como ele faria isso? Como ele dividiria seu arado e daria um parte para um agricultor e a outra parte para um alfaiate? Mesmo para os casos que os bens são divisíveis, é geralmente impossível que dois indivíduos dispostos a transacionar se encontrem no momento exato. (Rohtbard, 2013, p. 14)
Por um processo espontâneo, o homem resolveu o problema da “coincidência de interesses” e da “divisibilidade” em um arranjo que permitiu que a economia crescesse de forma contínua: a troca indireta. Diversas mercadorias e em diversos momentos e lugares foram utilizadas como meios de troca para as transações: tabaco, açúcar, sal, gado, conchas, anzóis, e outros, até o formato do dinheiro que conhecemos hoje. Neste processo, os metais ouro e prata foram as mercadorias que melhor agregaram as qualidades essenciais para um bom dinheiro: meio de troca, reserva de valor e unidade de conta.
A utilização do ouro como dinheiro teve seu auge até o fim do período chamado “padrão-ouro clássico” (1815-1914), quando as transações eram feitas em moedas de ouro ou em certificados lastreados 100% em ouro. Desde então, o sistema monetário internacional entrou em crescente ruína. O sistema, dominado por bancos centrais ao redor do mundo, fez desvalorizar o poder de compra das moedas frequentemente a fim de atender necessidades políticas e não as demandas legítimas das pessoas em um mercado que deveria ser verdadeiramente livre. Abandonado o sistema lastreado em uma mercadoria (no caso, o ouro) valorizada e demandada por todo o mundo, que permitia uma melhor integração do comércio internacional e, por consequência, maximização da divisão do trabalho mundial e o cálculo econômico de forma sistêmica e internacional, de quando em quando uma nova solução foi proposta, entretanto, como aponta Rothbard (2013, p. 75, grifo do original):
Cada novo sistema, cada mudança básica, é saudado extravagantemente por economistas, banqueiros, políticos, imprensa e bancos centrais como a derradeira e permanente solução para nossas persistentes aflições monetárias. E então, após alguns anos, o inevitável colapso ocorre, e todo o establishment em desespero se apressa para criar mais uma nova engenhoca, mais uma maravilhosa panaceia monetária que supostamente devemos admirar e louvar.
A intromissão dos governos no âmbito monetário e o consequente fim da escassez que o dinheiro deve possuir como elemento fundamental, permitiu as grandes guerras mundiais, transformou um mundo que poderia ser de relações mais pacíficas em variados blocos monetários, guerras cambiais e protecionismos comerciais, além de dificultar a prosperidade.
De fato, o dinheiro vem perdendo paulatinamente suas características fundamentais, entre elas a de reserva de valor. Tal efeito, perverso para os postados na base das pirâmides socioeconômicas e longe de ter como causa algo natural e espontâneo, é provocado pelas ingerências de governos no sistema monetário, por meio do monopólio das políticas monetárias e pela impressão de moeda sem lastro, o que causa a inflação.
A inflação, de acordo com a Teoria Monetária da Escola Austríaca de Economia, é a introdução de moeda de modo deliberado e constante no mercado (aumento da base monetária) e, o efeito disso, é o aumento de preços verificados nas prateleiras. O aumento ou diminuição de preços dos bens e serviços ocorre devido à lei de oferta e demanda e tal lei também se aplica para explicar o valor da moeda. Segundo Iorio (2011, p. 126, grifo do original):
A partir da Theorie des Geldes und der Umlaufsmittel, cuja segunda edição, de 1924, (Mises) integrou as teorias da moeda, do capital e da utilidade marginal para explicar os problemas da inflação, da recessão e dos ciclos econômicos, os fenômenos monetários passaram a ser analisados em conjunto com os demais fenômenos econômicos, como os da oferta, demanda e preços, sem necessidade de serem isolados nos conceitos de “velocidades”, “níveis gerais de preços” ou “equações de troca”.
Significa dizer que o valor do dinheiro se processa da mesma forma que a descoberta de preço para qualquer item de interesse das pessoas. Dito de outra forma, se um par de sapatos custa X é porque, tudo o mais constante, um número total de pares é ofertado pelos empreendedores a um grupo de interessados em pares de sapatos. Dessa interação resulta espontaneamente no mercado o preço do par de sapatos. Igualmente, o valor da moeda se forma pela oferta da moeda em relação a demanda por essa mesma moeda pela sociedade onde circula. Por conseguinte, temos que:
De fato, cada indivíduo, ao decidir a porção de sua riqueza a ser mantida sob a forma de moeda (liquidez “não usada”), deve subjetivamente estimar a utilidade marginal de cada unidade monetária, ou seja, seu poder de compra, ou, ainda, seu preço. (Iorio, 2011, p. 127)
Disso decorre que a demanda por dinheiro se traduz nos diversos bens oferecidos em troca de dinheiro e a oferta de dinheiro se refere ao seu estoque total. Portanto, o preço do dinheiro é o seu poder de compra. Identicamente, se ao aumentarmos a quantidade de um bem ou serviço ofertado no mercado seu preço pode reduzir, o preço do dinheiro (seu poder de compra) também diminui ao aumentarmos sua oferta em um determinado mercado. Todavia, paradoxalmente, se um aumento na oferta de bens e serviços pode produzir um efeito benéfico na sociedade pela possível redução de preços e aumento de poder de compra do dinheiro, isso não é verdadeiro para um aumento na oferta de dinheiro:
Assim, vemos que, embora um aumento na oferta monetária, assim como um aumento na oferta de qualquer outro bem, reduza o preço do dinheiro, tal alteração não produz – ao contrário do que ocorre com os outros bens – nenhum benefício social. O público em geral não se torna mais rico. Ao passo que novos bens de consumo ou de capital aumentam os padrões de vida da população, um aumento da quantidade de dinheiro na economia gera apenas aumento de preços – isto é, dilui seu próprio poder de compra. A explicação para este aparente enigma é que o dinheiro só é útil pelo seu valor de troca. (Rothbard, 2013, p. 28, grifos do original)
Alguns pensadores alertaram sobre o caos no sistema monetário e financeiro espalhados pelo mundo e foram precisos nas suas análises e conclusões, entre eles Friederich August Hayek. O último resquício de uma moeda vinculada a um bem do mercado (no caso o ouro) foi extinto em 15 de agosto de 1971, quando Richard Nixon decretou o fim do acordo de Bretton Woods e, daí em diante, as moedas passaram a depender exclusivamente dos bancos centrais. Hayek, depois de ser laureado em 1974 com o Nobel em Economia, foi um dos proponentes, em 1978, da separação entre moeda e estado:
Até o momento, a principal conclusão é que a maior falha da estrutura de mercado, qual seja, sua suscetibilidade à depressão e ao desemprego periódicos – objetos de justificada censura –, é consequência do milenar monopólio governamental sobre a emissão da moeda. Já não tenho dúvidas de que a empresa privada, se não tivesse sido impedida pelo governo, já teria há muito fornecido ao público uma variedade de moedas, à escolha deste público: seriam vitoriosas na competição aquelas cujo valor se tivesse mantido essencialmente estável e que tivessem impedido tanto a excessiva estimulação do investimento quanto os consequentes períodos de retração. (Hayek, 2011, p. 20)
40 anos depois, os males do monopólio estatal sobre a moeda ficaram ainda mais evidentes, pois a crise de 2008 foi o ápice dessa desordem, dadas as interferências governamentais que vinham (e continuam) estabelecendo mais e mais controle sobre os indivíduos e no processo de mercado. Além disso, a salvação de grandes empresas e bancos com o uso de dinheiro pago pelos mais pobres, em forma de impostos e programas de “estímulo”, abriram espaço para uma crise que pode ter um potencial destrutivo ainda maior hoje que 16 anos atrás.
Ocorre que nem mesmo Hayek, anos após sua morte, poderia imaginar que sua teoria sobre um livre mercado na produção de moeda poderia encontrar a prática em uma revolucionária tecnologia: o Bitcoin. Especialmente no que se refere à inflação, cujo resultado é a perda de poder de compra do dinheiro, o que empobrece de modo geral os seus usuários. Escreveu Hayek (2011, p. 19):
A investigação mais profunda da sugestão de que o governo seja despojado de seu monopólio sobre a emissão de moeda permitiu descortinar as mais fascinantes perspectivas teóricas e demonstrou a viabilidade de sistemas de organização que jamais haviam sido cogitados.
Surgido na esteira da crise dos subprimes de 2008/2009, o Bitcoin fundamenta-se na criptografia e internet. Proposto em um artigo (white paper) por Satoshi Nakamoto, pseudônimo de alguém ou de uma comunidade, em um grupo de e-mail de cypherpunks onde os integrantes divulgavam e testavam softwares abertos e descentralizados, em grande parte como resposta aos abusos reincidentes por parte dos governos dos seus privilégios de senhoriagem e monopólio de emissão de moeda.
Bitcoin foi criado para ser dinheiro que pode ser enviado por qualquer meio de comunicação, um sistema de pagamento global totalmente descentralizado. Segundo Amoedo e Schramm (2021, p. 90, grifos nossos), possui três funções inatas:
a) é sistema de comunicação global, incensurável, público e perpétuo – que garante a faculdade de troca de informações e registro público de dados fora de qualquer controle estatal; b) é sistema de pagamentos que não está sujeito às jurisdições nacionais, o que inviabiliza, na prática, controle de capitais (incluindo no mercado internacional os bilhões de indivíduos sem acesso a serviços bancários); e c) é plataforma de manutenção de saldos como reserva de valor, que apresenta certas características de dinheiro superiores ao ouro e a qualquer reserva de valor anteriormente adotada – libertando seus usuários de expropriações e tributos involuntários, mesmo após a sua morte, incluindo aí até mesmo a senhoriagem e a inflação.
Programado para uma emissão máxima de 21 milhões de bitcoins por um sistema chamado de “mineração”, estima-se que o último “satoshi” (ou 0,00000001 de um bitcoin) será colhido por volta do ano de 2140. Tal técnica pretende reproduzir a mineração do ouro ou outro metal precioso.
Nascido no mercado, existe e mantém-se de forma descentralizada, não necessita de uma terceira parte (como um banco) para as transações. Pode ser transacionado de e para qualquer parte do mundo. É resistente à censura e ao confisco. Seu protocolo não pode ser alterado unilateralmente e, tomadas algumas medidas prudenciais, preserva o anonimato dos usuários.
O advento do Bitcoin promete resgatar as funcionalidades originais do dinheiro. Operando de forma descentralizada e livre de domínio estatal, não possui um órgão central emissor e tão pouco controlador. Não pode ser emitido mais bitcoins que o programado, o que lhe dá a escassez necessária para tornar-se uma boa moeda, impossibilitando sua inflação e os efeitos deletérios desta. É bem verdade que o Bitcoin está em fase de adoção e descoberta de preço, todavia, se empregado conforme sua finalidade – tornar-se uma moeda mundial-, pode oferecer uma chance para a humanidade novamente possuir um instrumento civilizador que possibilita a preservação de riqueza, o declínio da preferência temporal e o caminho da prosperidade.
Referências:
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Iorio, Ubiratan Jorge. Ação, tempo e conhecimento: a Escola Austríaca de Economia. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2011.
Hayek, Friederich August. Desestatização do dinheiro: uma análise da teoria e prática das moedas simultâneas. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2011.
Rothbard, Murray N.. O que o governo fez com nosso dinheiro. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2013.
Amoedo, Renato e Schramm, Alan. Bitcoin red pill: o renascimento moral, material e tecnológico. Alan Schramm Editora, 2021.