No artigo “Democracia, um misto de monopólios e tragédia dos comuns” demonstrei como a democracia, longe de proteger os indivíduos, a propriedade privada e evitar a tirania, caminha em um sentido totalmente oposto, entregando o que propõe a evitar. Os monopólios exercidos pelo governo, em especial na educação, segurança e no sistema de saúde, por meio de agências reguladoras e maciças regulamentações, entregam produtos e serviços virtualmente mais caros e de menor qualidade, os quais, se deixados ao livre mercado e à iniciativa privada, poderiam fornecer melhor bem-estar à população. Por outro lado, por conta do livre acesso ao governo (qualquer pessoa pode assumir um cargo eletivo ou administrativo nas estruturas governamentais) e dado que efetivamente os efeitos das decisões e ações daqueles que compõem a estrutura governamentais não recaem sobre eles e, aliás, são arcados por todos os pagadores de impostos, a democracia permite e até estimula a chamada Tragédia dos Comuns, quando um bem público – que objetivamente não é de ninguém – sofre todos os incentivos para ser mal gerido, superexplorado e até exaurido.
Muitíssimo melhor que eu, Bertrand de Jouvenel (1903-1987), nascido em Paris, também analisou a questão democrática. Sob o prisma da natureza do Poder, demonstrou fundamentos dos porquês deste sistema de governo estar se encaminhado para o fracasso, por seu aviltamento, violações da propriedade e auto-propriedade, regulamentações, supressão de liberdades individuais e imiscuição nos mais íntimos caracteres da vida humana.
Professor, repórter, pesquisador, escreveu, entre outros, “O Poder: história natural de seu desenvolvimento”, tida como sua obra prima. Na obra, Jouvenel argumenta que o Poder tem vida própria e que a História é “essencialmente competição de vontades autoritárias que disputam por todos os meios o material comum de todos os seus empreendimentos: as forças de trabalho humanas”. É um trabalho denso e minucioso que escrutina o Poder, disseca-o, determina suas origens, sonda sua natureza e os meios pelos quais se amplia e se eterniza. O Poder é um ser mítico que paira sorrateiro sobre as pessoas e instituições, por um lado se utilizando delas para existir e por outro oferecendo parte de si aos homens para dar algum aspecto de ordem nas sociedades. Entretanto, desde que admitido, mesmo que desejado justo e pequeno, não demora a ampliar seu campo e dominar fervorosamente.
Não vamos aqui resumir todo o livro, seria melhor lê-lo diretamente. Por ora, nos basta apontar alguns argumentos. O Poder não admite concorrência e sua desfaçatez reside nos anseios dos que se sentem sob o jugo de outros poderes sociais como a família, o patronato, realezas, monarquias, aristocracias, etc. Essas entidades sociais produzem poderes concorrentes que de certa forma e inicialmente limitam o Poder e, se carreadas as aspirações dos que estão sob esses poderes, um poder central e mais autoritário surge como libertador, sem demonstrar que os anteriormente dominados apenas estão trocando um poder menor, descentralizado e menos poderoso pelo Poder (nosso ser mítico), maior, centralizado e mais autoritário.
Como exemplo, no período compreendido da chamada Idade Média, via de regra, o mundo ocidental era constituído de nações as quais, mesmo que às vezes inseridas em um “império”, gozavam de grande descentralização e liberdade em relação ao rei. Um rei para ir à guerra precisava solicitar apoio e recursos dos senhores feudais e principados, os quais poderiam negá-los. Também, as leis eram oriundas dos costumes ou de “inspiração divinas” e tanto o cidadão comum como o rei precisavam obedecê-las igualmente; o rei era, em síntese, o guardião dos costumes e, se os infringisse, deveria ser julgado como um comum. Portanto, a descentralização do poder oferecia obstáculos ao crescimento do Poder e este não era “autor de leis” mas subordinado a elas.
Ao longo da história, o Poder sofreu mutações e ampliou seu escopo até atingir a antessala da tirania, a democracia. Como diz Jouvenel, “o poder muda de aspecto mas não de natureza” e as revoluções, de um modo ou de outro, findam por aumentar o Poder. Se antes existiam barreiras ao aumento e centralização do poder instituídos pelos costumes, leis divinas, pela aristocracia, senhores feudais, a relação parental, as
associações civis, o patronato, o Poder os vem cooptando e substituindo, se já não os substituiu e, não raro e paradoxalmente, estimulado muitas vezes pelo anseio dos seres por liberdade.
Se antes a justificação do Poder estava nos mitos, na natureza, nos costumes, em Deus (ou nos de seus representantes), na democracia encontra-se na “soberania popular”. Se antes o Poder estava perfeitamente identificável e separado dos demais na pessoa do rei, hoje encontra-se difuso. Antes era benéfico dentro de certos limites, pois se deparava com outros interesses de respeito que o limitavam de determinado modo; hoje, se converteu na “vontade geral”. Outrora, era reconhecido um certo interesse nele para a Sociedade; atualmente, é o próprio “interesse da sociedade”. O Poder desarmou, enfim, qualquer desconfiança a seu respeito.
Corrompidas as associações civis, agora amplamente dominadas pelo Poder que determina (e vem determinando cada vez mais) como deve ser as relações de mercado, familiares, patronais, de associação, da propriedade, da autopropriedade, os indivíduos, incapazes de embargar o seu avanço, são cooptados a adentrar ao Poder, participar dele. Os interesses particulares não mais respeitados são agora estimulados a uma ofensiva constante, por meio do próprio Poder, a fim de bloquear outros interesses conflitantes. Ora, se o Poder é impossível de ser parado, nada mais sensato do que tentar se utilizar dele, ou pelo menos influenciá-lo, e se ele é a representação da “vontade geral”, é preciso adentrar aos seus mecanismos.
De fato, embora alardeie que sua autoridade é oriunda do povo, é preciso que o comando do Poder seja exercido por alguém ou instituição que os represente, o qual passa a ser objeto de disputa, destituído de qualquer estabilidade. Partidos políticos, sob os quais se desenvolvem sindicados de interesses diversos, entram em disputa da hegemonia no comando, sob o falso manto da vontade geral, cuja manifestação se daria nas eleições. Disso resulta que os interesses fracionários que melhor souberem se organizar sobre a opinião da maioria subjugarão o Poder, o tomarão em seu proveito.
As máquinas políticas se encarregarão de todo trabalho para o eleitor e pouparão o seu esforço na busca das opiniões mais corretas e pessoas mais dignas para os cargos. Longe de desejar conhecer sobre filosofia política, as necessidades empíricas do eleitor serão o farol para o seu voto e disso obteremos que os representantes eleitos não serão uma assembleia na qual uma elite de homens independentes comparam opiniões livres e chegam a uma decisão racional. Será apenas uma câmara de compensação de votos e, não à toa, os piores chegarão ao poder pois a autoridade atrai os autoritários e o poder atrai os poderosos.
A máquina que se mostrar melhor organizada e aparelhada acabará por dominar:
“Se uma delas, enfim, puser mais sistema em sua organização, mais arte em sua propaganda, reduzir sua doutrina a termos ainda mais simples e, portanto, mais falsos, se ultrapassar seus adversários em injúrias, em má-fé, em brutalidade, se agarrar a presa cobiçada e, tendo-a agarrado, não quiser mais deixá-la escapar, temos, então, o totalitarismo.” (Jouvenel, 2010, p. 345)
É impraticável em poucas páginas expor toda magnitude, importância e assertividade do pensamento de Bertrand de Jouvenel difundido no livro O Poder. No entanto, é possível, do exposto, deduzir que a democracia encontra-se sob suspeita.
Ficou claro que ao longo da história, o Poder galgou autonomia e terreno sobre o indivíduo sistematicamente. Em certa medida necessário, destrói ou subjuga as outras formas de poder concorrentes para ao fim dominar soberana, centralizada e tiranicamente sob o formato da democracia, a qual, disfarçada da autoridade da “vontade geral”, não passa de uma estrutura de comando disputada por grupos melhores organizados que visam impor e manter interesses específicos em detrimento de todos os outros.
Enquanto o mundo polariza-se entre Ocidente e Oriente, progressistas e conservadores, direita e esquerda, socialismo e capitalismo, etc, o Poder segue incólume o caminho do agigantamento e dominação, dado que os atores de cada lado não percebem que jogam o jogo dele, executam e refinam os seus instrumentos.
Em terras tupiniquins, neste exato momento, se as olharmos com as lentes de Jouvenel aqui expostas, é fácil perceber a coerência de suas afirmações pois, não há dúvida, a prática confirma a teoria. O sistema democrático e seus pesos e contrapesos são inúteis para barrar o Poder, aliás, os sustentam e elevam. E não poderia ser diferente porque executivo, legislativo e judiciário são elementos do Poder, são seus meios; são internos ao sistema e portanto, incapazes de oferecer alguma resistência. Os interesses conflitantes dos ocupantes temporários dos cargos estatais, vendo-se ameaçados, recorreram à sua cota de poder em suas mãos e, no processo vitorioso de aniquilar a concorrência, ofereceram substância ao aumento do Poder ao corromper as próprias leis que o limitavam, mesmo que fragilmente: prisões arbitrárias, violação de propriedade, leis que dificultam a liberdade de expressão, e por aí vai.
Podemos inferir, assim, que esses membros provisórios da estrutura governamental dotados de alguma autoridade passarão, mas o Poder seguirá inabalado, maior e mais tirânico.
Enfim, Jouvenel tem razão.
Fonte:
Jouvenel, Bertrand de. O poder: história natural de seu crescimento. São Paulo: Peixoto Neto, 2010.