O livro “Progress and Poverty” de Henry George (1935), publicado originalmente em 1879, defendia a tese de que a especulação fundiária era a causadora da pobreza, principalmente em sociedades altamente industrializadas, nas quais a escassez de espaço elevava os valores da terra e gerava altos valores de aluguel para seus proprietários, que drenavam a riqueza da região, tanto dos trabalhadores, quanto dos empresários que da terra dependiam, em benefício dos senhorios.
A solução proposta por Henry George foi a implementação de um imposto único sobre o valor da terra básica (sem considerar em seu cálculo os melhoramentos e edificações feitas sobre a terra), de forma que o estado pudesse “apropriar-se dos aluguéis por meio da taxação” (1935). Segundo o autor, tal imposto iria remover a oneração aos fatores produtivos da sociedade – trabalho e capital – causada pelos demais impostos existentes, e onerar apenas os senhorios especuladores que tiravam vantagem da valorização da terra básica sem nada produzir. Segundo o autor, a terra foi “dada por Deus” à humanidade, e nenhum homem deveria ter, individualmente, a possibilidade de se apropriar da mesma, posto que o valor econômico da terra é dada pelas estruturas sociais que a cercam, ou seja, pela sociedade.
A aparente simplicidade e a tentadora clareza tributária que pudesse decorrer do modelo de imposto único sobre a terra, de Henry George, atraiu a atenção de muitos em seu tempo, tendo sido considerado um grande pensador que avançou significativamente a teoria econômica. Seu livro “Progress and Poverty” tornou-se um best-seller durante o fim da vida de George, e até hoje encontramos muitos defensores do chamado Georgismo. Porém, seria este imposto realmente eficiente no âmbito econômico? E caso positivo, seria ele moral?
O intento da ideia de imposto único de Henry George era solucionar a pobreza e o desemprego, acabar com os outros impostos, que oneram a produção, e confiscar os benefícios (supostamente) indevidos dos proprietários de terras sobre a capitalização de suas propriedades. Capitalização que só existe devido ao aumento da demanda pela terra, por conta de um aumento da infraestrutura ou população local, elementos estes que têm por origem os esforços da sociedade, e de forma alguma os esforços do proprietário da terra, tendo o último, portanto, auferido um enriquecimento imerecido por detê-la. George (1935) encadeava as origens das crises econômicas e a permanência de muitas pessoas na condição de pobreza, mesmo em sociedades industrializadas, aos “senhorios ausentes” que “drenam sem retorno o produto líquido do solo” (p.128).
O economista não propunha a nacionalização das terras pelo estado, mas o confisco da renda delas oriunda, nas palavras do autor:
Não proponho nem a compra nem o confisco de propriedades privadas em terras. A primeira seria injusta; a segunda, desnecessária. Deixe que os indivíduos que atualmente as possuem ainda mantenham, se desejarem, a posse daquilo que chamam de suas terras. Permita que continuem chamando-as de suas terras. Deixemos que as comprem e vendam, herdem e leguem. Podemos seguramente deixar-lhes a casca, se tomarmos o cerne. Não é necessário confiscar a terra; é apenas necessário confiscar o aluguel. […] Pois, sendo o aluguel recolhido pelo Estado em impostos, a terra, não importa em nome de quem estivesse registrada ou em que porções fosse mantida, seria realmente propriedade comum, e cada membro da comunidade participaria dos benefícios de sua propriedade. (tradução nossa, itálicos do original). GEORGE (1935, p. 405-406).
Murray Rothbard (2023b, p.143), por sua vez, nos diz que qualquer benefício que o modelo georgista pudesse trazer à sociedade, como uma menor oneração à produção, viria unicamente da “eliminação de todas as outras formas de tributação”, e não do imposto sobre o aluguel da terra em si. Segundo Rothbard tal imposto simplesmente levaria o valor de capital da terra a zero, visto que “o valor de capital da terra, assim como de qualquer outra coisa, é igual e determinado pela soma das rendas futuras aguardadas, descontada da taxa de juros” (p.145).
Se todos os aluguéis seriam direcionados ao estado na forma de impostos, seus proprietários não teriam nenhum estímulo para calculá-los e cobrá-los e, portanto, seria necessário ao estado contratar um “exército de avaliadores” para determinar o valor de aluguel das terra básicas (sem melhoramentos) para, dessa forma, poderem cobrar de seus “proprietários” os imposto devidos. Porém, como definir tais aluguéis sem a existência de um mercado? Além disso, como poderiam os avaliadores do estado separar o valor da terra básica dos melhoramentos que encontram-se sobre a mesma? Sendo que os melhoramentos e construções fazem intrínseca parte da propriedade como se encontra no momento e podem apenas ser avaliados subjetivamente, por cada indivíduo de forma diferente, a depender de suas necessidades e perspectivas. Assim sendo, podemos concluir que a determinação de tais aluguéis, e por conseguinte, de tais impostos sobre o valor da terra básica seria da mais absoluta arbitrariedade.
Mesmo em um cenário hipotético no qual fosse possível auferir os valores de aluguéis de terras básicas sem incorrer em tais arbitrariedades e distorções, a medida do imposto único georgista seria economicamente desastrosa para a sociedade, pois tal imposto “destruiria completamente a importante função do mercado de fornecer locais eficientes para todas as atividades produtivas do homem e o uso eficiente da terra disponível” (Rothbard, 2005). De acordo com o autor, o proprietário de terras no livre mercado realiza a importante função alocativa das mesmas no tempo:
Há uma escolha entre o uso no presente ou o uso em vários momentos no futuro. Se o proprietário do bem estima que a demanda pelo bem será maior no futuro e que, portanto, seu preço será maior, ele manterá os bens (em estoque) até aquela data […] Ele serve aos consumidores mudando o bem do uso do presente para um uso mais altamente valorizado no futuro. ROTHBARD (2023b, p. 501).
O proprietário, no entanto, não tem nenhum estímulo para manter voluntariamente sua terra produtiva ociosa no presente, mesmo prevendo que a mesma se valorizará no futuro, pois a “terra é um recurso permanente” e “pode ser usada tanto no presente quanto no futuro”. “Qualquer retirada da terra do uso por parte do proprietário é simplesmente tola”, mas, por vezes, mantê-la ociosa pode partir de uma decisão racional por parte do proprietário, vejamos:
Em muitos casos, uma área de terra, uma vez comprometida com certa linha de produção, não poderia ser transferida para outra linha com facilidade ou sem custo expressivo. No caso em que o proprietário de terra prevê que um melhor uso em breve se tornará disponível ou tiver dúvida quanto ao melhor comprometimento da terra, ele manterá a área de terra fora de uso se sua economia em “custo de mudança” for maior que seu custo de oportunidade em esperar e renunciar a aluguéis que podem ser obtidos no presente. O proprietário de área especulador está, então, prestando um grande serviço aos consumidores e ao mercado em não comprometer a terra com um uso produtivo mais pobre. Ao esperar para destinar a terra a um uso produtivo superior, ele está destinando a terra aos usos mais desejados pelos consumidores. ROTHBARD (2023b, p. 501).
Além disso, quanto à ociosidade das terras, devemos levar em consideração que diferentes terras têm diferentes capacidades produtivas, as terras marginais sendo aquelas que têm renda próxima de zero e as terras “supramarginais” sendo as mais produtivas e que conseguem obter renda maior que as terras marginais, porém, muitas terras são “submarginais”, isto é, têm renda igual a zero. Isso ocorre pois elas se encontram em situação mais improdutiva que as demais terras aos níveis atuais de escassez de capital e trabalho em sua região:
Como o trabalho é relativamente mais escasso que a terra e relativamente não específico, haverá sempre terra ociosa e com aluguel zero, ao mesmo tempo em que nunca haverá trabalho ocioso involuntariamente ou de remuneração zero. Um aumento ou decréscimo na oferta de terra “submarginal” não terá efeito na produção. Um aumento na terra supramarginal aumentará a produção e transformará a terra, até então marginal em submarginal. ROTHBARD (2023b, p. 543).
Resumindo, um aumento da quantidade de terras disponíveis para fins produtivos, oriundo do imposto único de George, sem alterar a quantidade de trabalho e/ou capital, não resultará em maior produção, apenas em mais caos e insegurança no mercado, e alocações mais ineficientes de terras ao longo do tempo.
A ideia de Henry George (1935, p.437) de “colocar todas as terras em leilão para quem pagar o aluguel mais alto ao estado”, na tentativa de alocar as melhores terras nas mãos de quem com elas consegue ser mais produtivo, incorre em uma falha que seria inadmissível até mesmo para os georgistas. Leilões desse tipo não conseguem evitar que o valor dos melhoramentos e construções presentes na propriedade sejam absorvidos pelos lances dos licitantes, tornando-se ele, afinal, um imposto sobre a propriedade e não mais sobre a terra básica, mantendo dessa maneira a oneração aos fatores produtivos do capital e o desincentivo ao investimento. Além disso, nenhuma terra seria alocada para usos mais produtivos no futuro, como é feito pelos especuladores que as guardam.
Apesar das preocupações originais de Henry George serem compreensíveis e pertinentes, suas soluções podem gerar ainda mais injustiça do que visam combater, confiscando coercitivamente toda renda da terra de seus legítimos proprietários, que exercem importante função alocativa, e que podem a ter comprado ou recebido em doação de um detentor legítimo anterior ou se apropriado originalmente de uma terra ainda não utilizada, “misturando seu trabalho com ela”, limpando-a, melhorando-a, cercando-a, subdividindo-a em lotes e/ou construindo sobre ela. Tais proprietários devem ter tanto direito à sua terra e a seus frutos quanto um pintor tem sobre a tela que pinta, ou um inventor sobre um aparato que constrói.
Muito da discussão poderia ser, inclusive, revertida para a constatação de que é o estado, e não os indivíduos, que apropria-se injustamente das terras sob seu julgo, apenas por estarem dentro das linhas imaginárias que atribuem seu território geográfico, sem misturar trabalho algum com a terra ou melhorá-la de forma alguma, apenas privando seu uso de apropriadores originais legítimos que dela poderiam, de fato, fazer algum uso produtivo, se a mesma for marginal ou supramarginal, ou prepará-la para usos futuros.
Além disso, há a alegação de que um proprietário de terra beneficia-se imerecidamente, como um caroneiro, com a valorização de sua terra, subsequente aos avanços sociais, melhoramentos da infraestrutura no entorno de sua terra, assim como do aumento populacional na região. Mas tal alegação pode ser aplicada a todas as demais atividades humanas, dessa forma, somos todos caroneiros de nossos antepassados e de nossa sociedade. Um artista, por exemplo, beneficia-se da infraestrutura de uma cidade, da aglomeração populacional e do aumento de produtividade proporcionada pelas indústrias (que permite maior tempo livre para as pessoas apreciarem arte) para vender suas obras e obter seu sustento. Seria um georgista também favorável que a renda de tal artista fosse confiscada pelo estado assim como a renda do proprietário de terra apenas por ambos se beneficiarem do aumento ou da modernização de sua região?
Mesmo que ignoremos as injustiças e a imoralidade representadas pelo confisco dos aluguéis de terras básicas pelo estado, vimos acima que não há sequer viabilidade econômica na implementação de tais medidas, pois a importância do fator “tempo” na questão alocativa de terras, e a subjetividade do valor de um bem, no caso, a terra com seus melhoramentos, é ignorada pelo Georgismo.
Concluindo, apesar dos avanços da teoria econômica realizados por Henry George em seu tempo serem significativos, devemos olhar com ceticismo para seu ideal de um imposto único sobre o aluguel da terra básica, pois, por mais tentadora que pareça uma simplificação tributária como esta, ela tem seu peso concentrado completamente em um dos principais fatores de produção da economia, a terra (em detrimento do capital e do trabalho). Uma tributação neste modelo iria gerar consequências econômicas e morais temerárias no mercado e na sociedade, muitas das quais foram previstas por Rothbard, Knight e outros autores, mas provavelmente outras que são imprevisíveis mesmo a eles ou a qualquer um de nós.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GEORGE, Henry. Progress and Poverty: An inquiry into the cause of industrial depressions and of increase of want with increase of wealth. New York: Robert Schalkenbach Foundation, 1935.
ROTHBARD, Murray. Governo e Mercado: A economia da intervenção estatal. São Paulo: LVM, 2023a.
ROTHBARD, Murray. Indivíduo, Economia e Estado. São Paulo: 2023b.
ROTHBARD, Murray. The Single Tax: Economic and Moral Implications and a Reply to Georgist Criticisms. Publicado pelo Mises Institute em 20 de Julho de 2005. Disponível em https://mises.org/library/single-tax-economic-and-moral-implications-0. Acesso em: 06 fev 2024.