O mercado é um processo no qual o empreendedor figura como agente principal. Utilizando seu capital para adquirir e alocar fatores de produção em sua empresa, seu objetivo é satisfazer adequadamente as necessidades de seus consumidores e, se for bem-sucedido, será recompensado através do lucro. Essa é uma das formas pelas quais a Escola Austríaca de Economia, através de seus contribuintes intelectuais, define o mercado.
O objetivo do presente artigo é verificar, à luz de conceitos abordados por renomados autores da Escola Austríaca de Economia, se o governo deveria de fato ser um agente empreendedor no mercado, uma vez que não possui o lucro como guia para suas ações “empreendedoras”. Isso se mostra pertinente principalmente para nós, brasileiros, levando em consideração que encontramos em nosso país diversas estatais atuando em setores produtivos nos quais já existem empresas privadas (geração de energia, combustíveis, financeiro, comunicações e logística).
Levando em consideração que as empresas privadas e estatais possuem incentivos diferentes em suas operações, cabe a seguinte pergunta: “Sendo o governo uma instituição cuja gestão é burocrática, não visa o lucro como objetivo primário e não possui suas ações orientadas por valores de mercado, seria justificável a sua presença em diversos setores produtivos?”. Para responder essa pergunta, serão analisados conceitos presentes em obras de Mises e Rothbard, proeminentes intelectuais da Escola Austríaca de Economia.
Em seu grande tratado sobre economia, “Ação Humana”, Ludwig von Mises discorre por todos os conceitos relacionados à economia de mercado (ou catalaxia), utilizando a praxeologia como ponto de partida para a elaboração de teses e proposições referentes ao assunto. A respeito do processo de mercado, Mises o descreve relacionando-o com o sistema de preços:
“O processo de mercado é o ajuste das ações individuais dos vários membros da sociedade de mercado aos requisitos de cooperação mútua. Os preços de mercado dizem aos produtores o que produzir, como produzir e em que quantidade. O mercado é o ponto focal para o qual as atividades dos indivíduos convergem. É o centro do qual as atividades dos indivíduos irradiam.”
(MISES, Ludwig von. Ação Humana: Um Tratado de Economia. Campinas: Vide Editorial, 2ª ed, 2020. p. 246)
Ainda na mesma obra, Mises define o termo capital da seguinte forma:
“O capital é a soma do equivalente em dinheiro de todos os ativos menos a soma do equivalente em dinheiro de todos os passivos, conforme dedicado em uma data definida à condução das operações em uma dada unidade de negócios. Não importa em que esses ativos possam consistir, sejam eles pedaços de terra, edifícios, equipamentos, ferramentas (…).”
(MISES, Ludwig von. Ação Humana: Um Tratado de Economia. Campinas: Vide Editorial, 2ª ed, 2020. p. 249)
Relacionando os dois trechos acima, fica evidente a relação dos conceitos de “Processo de Mercado” e “Capital” como fundamentais para a atividade empreendedora.
Já em seu outro livro, “Burocracia”, Mises faz uma importante distinção entre a gestão pelo lucro (capitalista) e a gestão burocrática (governamental). Sobre a primeira:
“No sistema capitalista, todos os planos e projetos baseiam-se em preços de mercado. Sem eles, tudo o que engenheiros projetam e planejam não seria mais do que um passatempo acadêmico. (…) O guia do planejamento econômico é o valor de mercado. São os valores de mercado, e nada mais do que os valores de mercado, que tornam possível determinar se a execução de um projeto Y irá dar mais retorno que os custos (…).”
(MISES, Ludwig von. Burocracia. Campinas: Vide Editorial, 1ª ed, 2018. p. 36)
Já a gestão burocrática, de acordo com o autor, “é o método aplicado na condução de questões administrativas, e cujo resultado não tem qualquer valor no mercado” (MISES, 2018. p. 63). Em relação à liberdade de procedimentos:
“A gestão burocrática é um gerenciamento obrigado a cumprir as regras e regulamentações detalhadas que são estabelecidas pela autoridade de um corpo superior. A tarefa do burocrata é levar a cabo o que lhe ordenam tais regras e regulações. A sua autonomia para agir conforme lhe parecer melhor está, assim, seriamente cerceada”.
(MISES, Ludwig von. Burocracia. Campinas: Vide Editorial, 1ª ed, 2018. p. 61)
Murray Rothbard, em seu livro “O Manifesto Libertário”, é contundente ao afirmar que a gestão pelo lucro é muito mais eficiente que a gestão burocrática e governamental, característica inerente de empresas estatais: “No livre mercado, em suma, o consumidor é rei, e qualquer empresa que queira ter lucros e evitar prejuízos tentará fazer o seu melhor para servir ao consumidor da maneira mais eficiente e dentro do menor custo possível”. (ROTHBARD, 2013. p. 233.).
Ou seja, para lucrar e permanecer no mercado, o empreendedor deve alocar seus recursos de maneira eficiente para atender aos desejos do consumidor. Todavia, segundo o autor, isso não ocorre na gestão governamental:
“A burocracia governamental não recebe sua renda da mesma forma que uma empresa privada, que tem que servir o consumidor de maneira satisfatória e vender seus produtos de maneira que a receita seja maior que os custos de toda a operação. Não, a burocracia adquire sua renda através da extorsão do resignado pagador de impostos.”
(ROTHBARD, Murray N. Por uma nova liberdade: O Manifesto Libertário. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil. 1ª ed. 2013. p. 233).
No mesmo livro, Rothbard (2013. p. 256) aborda um outro problema das gestões burocráticas, relativo à alocação de seu capital:
“O ponto é que o governo não tem uma maneira racional de alocar estes recursos. O governo sabe apenas que ele tem um orçamento limitado. A maneira com a qual ele aloca estes fundos, portanto, está sujeita a todo o jogo da política, desperdício de tempo e ineficiência burocrática (…).”
No mercado definido por Mises, os empreendedores necessitam organizar seus fatores de produção da maneira mais eficiente possível, de modo a atender às demandas dos consumidores, que variam constantemente. Caso falhem em sua empreitada, terão prejuízos. Sendo o governo uma instituição burocrática, ou seja, com normas rígidas de funcionamento, é natural de se esperar que suas ações sejam mais lentas e ineficientes que as dos empreendedores privados (capitalistas).
Em relação à forma de captação de recursos para investimento estatal, as principais são: arrecadação tributária, aumento da base monetária e emissão de títulos de dívida pública. Partindo da premissa de que essa arrecadação é coercitiva, não cabendo ao indivíduo optar por aderir ao projeto ou não, o argumento de Rothbard é pertinente: o estado, além de captar recursos através de coerção, não possui os mesmos mecanismos de incentivos que os empreendedores privados. Se falharem em suas atividades, recorrerão novamente à extorsão para captar novos recursos. Ademais, nas empresas estatais não é possível avaliar as atividades operacionais a partir de valores de mercado, o que dificulta a alocação eficiente de capital em sua estrutura produtiva.
Diante do exposto no presente ensaio, foi possível observar que empresas privadas cujo foco é o lucro, por natureza, tendem a ser muito mais eficientes que instituições burocráticas, pois estas são inerentemente mais lentas e rígidas que as primeiras. Além disso, os mecanismos de incentivos das empresas privadas recompensam e punem os empreendedores conforme os resultados de suas operações.
Sendo a burocracia apenas um método de gestão, e não um mal em si mesmo, é conveniente afirmar que esta deve ser limitada apenas àquelas atividades em que explicitamente não visem o lucro, uma vez que nela é impossível obter valores de mercado.
Por fim, em resposta à pergunta constante no terceiro parágrafo, é difícil acreditar que seria adequado ao Estado, uma instituição de natureza eminentemente burocrática e financiada por coerção, empreender nos diversos setores econômicos, uma vez que tende a ser muito menos eficiente do que os empreendedores guiados por valores de mercado.
Referências bibliográficas:
MISES, Ludwig von. Ação Humana: Um Tratado de Economia. Campinas: Vide Editorial, 2ª ed, 2020.
ROTHBARD, Murray N. Por uma nova liberdade: O Manifesto Libertário. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2013.
MISES, Ludwig von. Burocracia. Campinas: Vide Editorial, 1ª ed, 2018.