RESUMO
Este texto visa estimular o leitor a ponderar sobre a definição de “coerção” e da justificativa do estado na obra Os Fundamentos da Liberdade (1983), de Friedrich August von Hayek. Para isso serão utilizados os argumentos de Murray N. Rothbard expressos no livro a Ética da Liberdade (2010), os quais, sob a perspectiva da Ética da Propriedade Privada, demonstram a inexatidão e subjetividade dos argumentos de Hayek.
INTRODUÇÃO
O mundo no longo prazo é o resultado das ideias anteriormente refletidas, aceitas e experimentadas. Essa afirmação, verdadeira sob quaisquer prismas, também fundamenta o campo da Ética, da Filosofia Política e, por consequência, da Justiça, do Direito, da sociedade, dos modos de relacionamento e, por que não dizer, da Economia.
Os pensadores que impulsionam esse processo amparam-se nos ombros daqueles que os antecederam. Refletem sobre as ideias, as colocam em prática, corroboram, melhoram, refutam, corrigem ou, a elas, adicionam suas conclusões para, depois, servirem de anteparo e ponto de partida para novos pensadores.
Refletir sobre e entender como se dá essa ordem de coisas ajuda a posicionar perante a realidade tanto o indivíduo que lê e observa quanto o que escreve e opina nos ciclos ininterruptos de evolução do conhecimento.
OBJETO DE PESQUISA
Nos campos da Filosofia e da Economia, entre outros, Friedrich August von Hayek é um paradigma. Representante dos pensadores liberais clássicos, e inspirado em titãs como Ludwig von Mises, Hayek em “Os Fundamentos da Liberdade” (1983) reintroduz as ideias liberais no seu tempo. Tal obra encontra críticas em Murray N. Rothbard, o chamado pai do Libertarianismo e da Ética da Propriedade Privada, no livro “A Ética da Liberdade” (2010), especialmente no que se refere aos conceitos de liberdade e coerção e seus reflexos no entendimento de atribuições do estado.
Esse exame empreendido por Rothbard será o tema deste trabalho com o fim de demonstrar a evolução do conceito de “coerção” em Rothbard amparado em Hayek.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Em Os Fundamentos da Liberdade (1983), Hayek sistematiza uma filosofia política em prol da liberdade individual definindo-a como a ausência de coerção de uma forma “negativa”, de modo que tal “coerção que uns exercem sobre outros se encontra reduzida, tanto quanto possível, no âmbito da sociedade. Ao longo deste trabalho, descreveremos este estado como um estado de liberdade” (HAYEK, 1983, p. 3). Murray N. Rothbard concorda com a definição inicial de Hayek a respeito da liberdade mas considera que
aquele comete fundamental e grave erro ao definir coerção. Para Rothbard a definição de coerção deve se restringir ao “uso invasivo da violência física ou a ameaça da mesma contra a pessoa ou propriedade (justa) de outro” (ROTHBARD, 2010, p. 295). Segundo ele, a definição de Hayek torna-se confusa e desorganizada pois além de incluir o anteriormente citado engloba ações pacíficas e não agressivas, o que leva a contradições.
Entre os exemplos das contradições de Hayek, Rothbard aborda o caso de recusa pacífica de se realizar uma troca. Diz Hayek:
Há, inegavelmente, ocasiões em que as condições do mercado de trabalho criam oportunidades de verdadeira coerção. Em períodos de desemprego generalizado, a ameaça de demissão pode ser utilizada para compelir o empregado a desempenhar tarefas diferentes das estipuladas no contrato original. Numa pequena cidade mineira, o gerente da mina pode exercer por capricho uma pressão arbitrária sobre alguém com quem não simpatize. (Hayek, 1983 apud ROTHBARD, 2010, p. 296)
Rothbard (2010, p. 296-297) menciona que a ameaça de demissão é apenas o direito do empregador de não mais desejar a troca com os empregados e que tais razões para isso, ao serem consideradas “arbitrárias” por Hayek, seriam de cunho simplesmente subjetivas. Ademais, elenca que além dos ganhos monetários as pessoas agem para também maximizar seus “ganhos psíquicos”, os quais podem englobar todos os tipos de valores. Então, não haveria nenhum direito dos empregados a continuarem empregados, visto que seria uma contradição com os direitos de propriedade do empregador e de forma alguma uma eventual demissão poderia ser considerada coerção.
Rothbard (2010, p. 303) também aborda que:
a justificação de Hayek para a existência do estado bem como o seu uso do imposto e outras medidas de violência agressiva baseiam-se em sua indefensável eliminação da distinção entre violência agressiva e defensiva e em sua aglutinação de todas as ações violentas com a rubrica única de graus variados de “coerção”
Visto que Hayek (Hayek, 1983 apud ROTHBARD, 2010, p. 302) alega que “a coerção, de qualquer modo, não pode ser completamente evitada porque a única maneira de impedi-la é pela ameaça de coerção”, e que “a sociedade livre tem resolvido esse problema conferindo o monopólio da coerção ao estado e tentando limitar esse poder a circunstâncias em que a ação do estado é necessária para impedir a coerção pelos indivíduos”. (Hayek, 1983 apud ROTHBARD, 2010, p. 302)
Rothbard (2010, p. 303) acrescenta:
A fim de “limitar” a coerção do estado (i.e., para justificar a ação do estado dentro destes limites), Hayek declara que a coerção é minimizada ou até mesmo deixa de existir se os decretos sustentados na violência não são pessoais e universais, conhecidas por todos com antecedência (o “império da lei”).
E cita as palavras de Hayek:
A coerção que um governo ainda precisará usar… é reduzida ao mínimo, tornando-se tão inócua quanto possível, graças às restrições impostas por normas gerais conhecidas, de maneira que um indivíduo, na maioria das vezes, nunca precisará sofrer coerção, a não ser que se coloque numa situação em que saiba que será coagido. Mesmo quando não se pode evitar a coerção, ela é privada de seus efeitos mais prejudiciais quando restringe a deveres limitados e previsíveis ou, pelo menos, quando é independente da vontade arbitrária de outra pessoa. Tornando-se essa coerção impessoal e dependente de normas gerais abstratas, cujos efeitos sobre os indivíduos não podem ser previstos na época em que as normas são estabelecidas, até os atos coercivos do governo se transformam em dados pelos quais o indivíduo pode pautar seus próprios atos. (Hayek, 1983 apud ROTHBARD, 2010, p. 303)
O que Rothbard considera um disparate “pois isso significa que, e.g., se existe uma lei governamental geral em que todas as pessoas devem ser escravizadas por um ano a cada três anos, então esta escravidão universal não é de forma alguma “coerciva””. (ROTHBARD, p. 305)
Mais adiante, Rothbard completa:
Vamos pressupor, por exemplo, duas possíveis sociedades. Uma é regida por uma vasta rede de leis gerais hayekianas, igualmente aplicáveis a todos, e.g., leis como: todos devem ser escravizados a cada três anos; ninguém pode criticar o governo, sob pena de morte; ninguém pode beber bebidas alcoólicas; todos devem se ajoelhar virados para Meca três vezes ao dia em determinadas horas; todos devem usar determinado uniforme verde etc. É evidente que esta sociedade, embora satisfaça totalmente o critério de Hayek de um império da lei não-coercivo, é completamente despótica e autoritária. (ROTHBARD, 2010, p. 305)
ANÁLISE
Para Murray N. Rothbard (2010, p. 52):
a chave da teoria da liberdade é o estabelecimento dos direitos de propriedade privada, pois o campo justificado de ação livre de cada indivíduo só pode ser demonstrado se seus direitos de propriedade forem analisados e estabelecidos. Então, “crime” será devidamente analisado e definido como uma invasão ou agressão violenta contra a propriedade justa de outro indivíduo (incluindo a propriedade de sua própria pessoa).”
Tudo o mais deve derivar deste conceito. Sendo assim, nenhum tipo de coerção é admitida dado que infligiriam a autopropriedade e a propriedade individual, ao passo que Hayek a admite posto que não poderíamos afastá-la de todo pois a “única maneira de impedi-la é pela ameaça de coerção” (Hayek, 1983 apud ROTHBARD, 2010 p. 302) estatal. Hayek justifica a “coerção mínima” para se evitar as maiores e generalizadas, por meio o estado, se “os decretos sustentados na violência não são pessoais e universais e conhecidos por todos com antecedência (o “império da lei”)”. (ROTHBARD, p. 303)
A fim de analisar a questão, será útil o exemplo do “imposto”.
O imposto obriga o indivíduo a ceder parte do fruto do trabalho a fim de custear o estado. Muito embora os impostos figurem em leis anteriormente estabelecidas e conhecidas de modo generalizado, são claramente violenta coerção porque, caso o indivíduo não “honre” a “obrigação”, ao fim e ao cabo poderá ser preso pela força das armas estatais, o que fere tanto a propriedade quanto a autopropriedade.
Para Hayek o indivíduo, sob leis gerais anteriormente conhecidas, “nunca precisará sofrer coerção, a não ser que se coloque numa situação em que saiba que será coagido” (Hayek, 1983 apud ROTHBARD, 2010, p. 303). Em outras palavras, quer dizer que sabendo que devo (pela força das armas estatais) pagar imposto e o pago, não estou sendo coagido; mas caso não pague, somente a partir deste ponto me colocaria em posição de ser coagido. Ora, ameaça de violência também é coerção. O indivíduo paga
os impostos compulsórios estabelecidos pelo estado porque deseja preservar algo que valoriza (permanecer fora da prisão, por exemplo) mais que o objeto da coerção. É exatamente o que ocorre em um assalto, seja à mão armada ou não: podemos ceder ao agressor e entregar-lhe o que impõe para preservar o bem estar físico ou a vida.
Qual a diferença qualitativa entre o assalto cometido por um indivíduo e a imposição de impostos executada pelo estado, ainda que sob leis gerais anteriormente conhecidas? Nenhuma, visto que ambas ações são levadas a efeito por ameaça agressiva contra o indivíduo. Acrescente-se ainda que, no caso de tentativa de assalto por um indivíduo, a vítima pode encontrar meios de prevenir ou defender-se, coisa que contra o estado é virtualmente impossível, em especial contra impostos.
CONCLUSÃO
Não há dúvidas sobre a grandeza de Hayek e de sua contribuição para um mundo mais livre. Sua obra “Os Fundamentos da Liberdade” (1983) é uma expressão inconteste sobre liberdade e ter sido adotada por um lado e criticada por outro por Rothbard é confirmação evidente disso. No entanto, como dito na introdução, conhecimentos estabelecidos servem de ponto de partida para novas análises, interpretações. É o que inferimos ao ler Rothbard sobre Hayek.
Fica claro que, sob a Ética da Propriedade Privada rothbardiana, as definições de Hayek sobre coerção e a consequente justificativa para ação coerciva do estado, mesmo que mínimo, podem ser consideradas incompletas, contraditórias e/ou inexatas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HAYEK, Friedrich August von. Os Fundamentos da Liberdade. Brasília: Visão, Universidade Federal de Brasília, 1983.
ROTHBARD, Murray N.. A Ética da Liberdade. São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010