Por: Caique Nobre
O artigo “O uso do conhecimento na sociedade”, de F.A. Hayek, foi publicado originalmente em 1945, intitulado “The Use of Knowledge in Society”, sendo uma importante contribuição contra a ideia de que o planejamento econômico de uma nação deveria ser feito por um único agente central, como é o caso de países socialistas.
Hoje (e naquela época) seria praticamente uma heresia afirmar que o conhecimento científico não é a soma de todo o conhecimento disponível, e que existiria um tipo de conhecimento prático, de circunstâncias particulares de tempo e espaço. A ideia de que o suposto conhecimento “científico” (ainda que imperfeito/incompleto) estaria acima do bom senso advindo da experiência prática cria pretextos para que uma elite de burocratas colha dados incompletos e os utilizem para subsidiar decisões autoritárias e ineficazes, a exemplo do ocorrido nos anos de 2020 e 2021.
Segundo Hayek, o conhecimento disponível é disperso, e nunca está disponível em sua plenitude para um único indivíduo ou grupo de indivíduos, pois ele se constitui na soma de todos os “dados de input” dispersos. A seguir, serão abordados os principais tópicos presentes nesse célebre artigo.
Planejamento
Planejamento é o nome dado ao “complexo de decisões inter-relacionadas sobre a alocação de recursos disponíveis, para determinada finalidade”.
Na sociedade, todos participam de certa forma do planejamento econômico. Esse planejamento requer conhecimento. Um planejamento eficiente irá demandar o maior nível de conhecimento necessário, a depender do volume e do alcance das decisões que serão tomadas. Por exemplo, planejar um orçamento familiar é muito diferente de tentar planejar o orçamento de um município, e muito mais difícil ainda é planejar o orçamento federal para o ano subsequente, a partir de informações preenchidas em um sistema (no caso do Brasil, o Plano de Contratações Anual – PCA)
Sendo assim, a questão principal não é sobre se o planejamento deve ser feito ou não, uma vez que ele é e sempre será necessário para gerir os recursos disponíveis. A questão é “quem deve realizar o planejamento: um agente central ou os próprios indivíduos de maneira descentralizada?”
Conhecimento
O primeiro passo seria identificar quais os tipos de conhecimentos disponíveis e quais seriam os mais importantes. Fosse o conhecimento científico o principal, talvez devêssemos arrogar o controle das decisões centrais a experts, mas como poderíamos escolher esses supostos experts?
Existe uma miríade de outros conhecimentos práticos e que ninguém, além dos próprios indivíduos, poderia saber melhor: os conhecimentos práticos aplicados em circunstâncias peculiares de tempo e espaço. Neste campo, os indivíduos têm vantagem exclusiva: reflita sobre quanto tempo demoramos para aprender novas habilidades, conhecer e nos adaptarmos a novos locais e a adaptar nossas habilidades a esses novos lugares. Cada profissional, dentro de seu campo de atuação, sabe muito mais sobre as peculiaridades de seu ofício do que um grupo de pessoas que nunca se atreveu a tentar desempenhá-lo, por um instante que seja. Logo, pela lógica, os indivíduos possuem sim essa vantagem de conhecimento. E para deixar isso ainda mais evidente, o momento em que a decisão deverá ser tomada também é extremamente relevante.
Existe um preconceito dos experts teóricos frente aos indivíduos que possuem conhecimento prático superiores aos seus, principalmente quando aplicados ao comércio. Como poderia um simples vendedor ambulante que trabalhou a vida inteira nessa área, mas nunca leu um livro sobre vendas, ser um melhor negociador do que um expert que leu 20 livros sobre o tema, mas nunca o aplicou na prática? Esse é o ponto que o autor quer chegar: Como o próprio nome diz, conhecimento prático depende da experiência prática dos indivíduos, podendo ser desenvolvido em maior ou menor grau, a depender das circunstâncias de tempo e espaço de aplicação.
E quando, por exemplo, os economistas que se utilizam de instrumentos matematizados falham em suas previsões, e atribuem essas falhas a uma certa “irracionalidade da economia” (ou aos “espíritos animais”, segundo Keynes), significa que esse é um problema de uma complexidade muito maior e que eles nem sequer imaginam. Esse conhecimento tão completo que eles buscam não está disponível de maneira imediata.
Adequação
Traçar um plano econômico preciso, detalhado e de longo prazo é uma tarefa muito menos formidável do que aparenta ser. Realizar esse planejamento requer a análise de um histórico das alocações de recursos passadas, um elevado conhecimento das condições presentes e um plano estratégico que norteie as ações futuras. O problema é que toda essa informação está disponível no momento presente, mas não consegue acrescentar as novas informações que virão no futuro. Ex: caso surjam novas e disruptivas tecnologias, métodos de produção e mudanças drásticas no cenário econômico mundial, esses planos terão que ser readequados à nova realidade, tornando-se obsoletos.
Novos desajustes irão demandar novos conhecimentos e novas soluções. Aqueles que minimizam sua importância são os mesmos que minimizam o papel da ciência econômica frente ao conhecimento científico. Além disso, é completamente inviável tentar compilar todos esses novos desajustes em relatórios estatísticos com o intuito de subsidiar decisões de um agente central.
O Sistema de Preços
O paradigma a ser discutido é sobre a adaptação rápida a mudanças em determinadas circunstâncias de tempo e espaço. Um comitê central de planejamento é capaz de agir nesse sentido, mas dependerá de frequentes relatórios minuciosos com informações precisas e tempestivas sobre as condições econômicas. Se por algum motivo a demanda por alguma matéria prima, como por exemplo o cobre, sofrer alteração significativa, isso deveria ser relatado ao agente de planejamento central de modo a subsidiar uma decisão imediata. Mas como seria possível esse agente decidir sobre toda e qualquer situação dos inúmeros bens e serviços disponíveis na sociedade? Ainda que isso fosse possível, ele poderia decidir de modo imediato em todos os casos?
Decidir sob essas circunstâncias requer descentralização. Esta, por sua vez, é mais plausível por combinar as informações disponíveis entre os agentes locais, que detém conhecimento mais íntimo sobre as circunstâncias particulares de tempo e espaço do cenário econômico. Todavia, esse conhecimento “local” é limitado, então se faz necessário um instrumento que permita a transmissão das novas mudanças a outros agentes econômicos e que por vezes estejam em outras regiões. Esse instrumento é o Sistema de Preços, que estabelece parâmetros para representar a unidade de valor e orientar as preferências de consumo e produção frente às mudanças no cenário.
O sistema de preços possibilita que os indivíduos ajustem suas preferências às mudanças do mercado sem a necessidade de conhecer as causas dessas mudanças. Sabemos o quão difícil é reter novos conhecimentos que sabemos que poderão mudar em questão de dias, sendo assim, podemos focar apenas naqueles que diretamente irão subsidiar nossas ações.
Não interessa saber por que uma determinada peça passou a ser mais demandada que outra, ou por que o preço da gasolina aumentou. O que nos interessa é saber que as condições agora estão diferentes e que devemos adequar nosso comportamento frente às novas mudanças. Ex: se o preço do barril de petróleo aumentar substancialmente, provavelmente teremos que recorrer a substitutos para seus usos, por terem apresentado vantagem relativa. Em um meio onde o conhecimento está disperso entre as pessoas, o sistema de preços, caso não seja distorcido, poderá muito bem coordenar os comportamentos dos indivíduos.
Ordem Espontânea
O simples fato de um grupo de indivíduos perceber uma mudança e passarem a economizar mais determinados recursos, já irá transmitir alguma informação para o mercado. Não é necessário verificar sua identidade e nem os motivos que os fizeram economizar mais. isso mostra que nossas ações têm um poder de influência muito além do que podemos imaginar em dado momento.
O sistema de preços por vezes é criticado por não ter sido criado/gerenciado por algum grupo de indivíduos, mas sim por ordem espontânea.
Segundo Alfred North Whitehead (1861-1947):
“É um truísmo profundamente errado, repetido por todas as cartilhas e por pessoas eminentes ao proferir discursos, que devemos cultivar o hábito de pensar no que estamos fazendo. O caso é exatamente o oposto. A civilização avança ao aumentar o número das operações importantes que podemos realizar sem pensar nelas”.
Existem instituições que só continuaram a existir porque funcionam, de fato. Além do sistema de preços, também temos a linguagem, o mercado, a família e as diferentes culturas como instituições criadas através da ordem espontânea. Fossem essas instituições criadas por alguém, certamente estariam entre as maiores invenções realizadas.
O sistema de preços foi o instrumento que aperfeiçoou a divisão do trabalho, a coordenação de recursos e o compartilhamento de informações entre a sociedade. Tudo isso só foi possível porque simplesmente “esbarramos” com essa ferramenta, e não a criamos em si. E para aqueles que a ridicularizam, como os socialistas, a realidade é que ainda não conseguimos inventar um sistema alternativo que seja mais eficaz.
Dispersão do Conhecimento
Até mesmo Leon Trotsky e Oskar Lange admitiram que o sistema de preços de mercado é imprescindível. O autor menciona o trabalho de Mises nesse ramo, indicando que é impossível gerenciar de maneira diligente os recursos disponíveis sem a existência de preços de mercado, que só são possíveis em uma economia de mercado em que exista a propriedade privada.
Cada indivíduo na sociedade possui um conhecimento parcial do todo. Quando combinadas essas partes, o conhecimento aos poucos vai se complementando, equivalendo a uma espécie de “BitTorrent intelectual”. Esse conhecimento também é imperfeito, sendo necessário um processo pelo qual ele esteja sempre sendo alimentado e retransmitido, até sua consolidação.
Conclusão
O presente artigo foi escrito em uma época na qual diversos governos acreditavam ter o poder divino de realizar o planejamento econômico de sua nação a partir de dados passados e de “expectativas” futuras, destacando-se principalmente a URSS. Apesar dos fracassos desses governos terem ficado registrados na história, infelizmente ainda temos muitos agentes defendendo o planejamento central como a maneira mais eficiente e “socialmente justa” para alocar recursos escassos.
Com base nos pontos abordados por Hayek, resta evidente que a dificuldade de realizar um planejamento é diretamente proporcional ao tamanho do escopo em que ele deverá ser realizado. Além da maior quantidade de recursos a serem alocados, maior o número de variáveis que deverão ser inseridas nesse planejamento, tornando-o ainda mais complexo.
Sendo assim, deixar que os indivíduos realizem esse planejamento econômico, a partir de suas próprias decisões individuais e guiadas pelo Sistema de Preços, é a maneira mais eficiente de garantir que os recursos sejam alocados de maneira mais eficiente e atendendo às necessidades mais urgentes do mercado.
No caso do Brasil, é simplesmente inverossímil acreditar que burocratas em Brasília possuam maior conhecimento sobre as necessidades de um determinado município isolado, do que os próprios habitantes desse município. Logo, a leitura do artigo de Hayek se faz imperativa, principalmente para aqueles que aspiram ocupar cargos políticos relacionados ao planejamento de recursos públicos.
Referências
HAYEK, F. A. VON. Uso do conhecimento na sociedade. MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia, v. I, n. 1, p. 153–162, 2013.