Em setembro de 2022, a Newsweek publicou um artigo de opinião (1) a respeito dos resultados da descriminalização de todas as drogas ocorrida no Oregon (EUA) dois anos antes. Em síntese, o artigo expõe estatísticas (mortes por opiáceos, overdose e doenças mentais) que pioraram e as relacionam com a Medida 110 daquele estado. Não entrarei em maiores detalhes sobre o caso, recomento fortemente que o leitor acesse-os no link nas referências. Interessa-me expor insights libertários a respeito do assunto.
De fato, a descriminalização das drogas é uma bandeira que os libertários levantam e buscam justificativa no direito natural da propriedade privada de que cada pessoa é a exclusiva proprietária de si mesma (autopropriedade) e, portanto, pode fazer o que bem entender com o seu próprio corpo. Quando surgem dados demonstrando que mais pessoas estão doentes, ou mesmo morrendo, em virtude de ações como ocorrida no Oregon no sentido da liberalização do uso de drogas não é incomum que muitas críticas e dúvidas sejam endereçadas aos que defendem tais medidas, pondo em cheque a autopropriedade libertária, dados os efeitos nocivos a um maior número de pessoas e a consequente externalidade negativa para a sociedade.
Inicialmente, precisamos lembrar que o articulista fundamenta seus argumentos do ponto de vista utilitário, ou seja, sob o prisma do resultado das ações. Assim, uma ação é considerada boa quando um maior número de pessoas consegue benefícios comparadas com as que sofrem os efeitos negativos. Posto que aumentou o número de pessoas que sofreram o efeito do uso de drogas relacionadas à descriminalização, logo a medida é ruim. Se passarmos as vistas rapidamente nos parecerá correto. Mas observando mais detidamente, podemos, mesmo sob o utilitarismo, identificar que o saldo é amplamente mais prejudicial à sociedade se fizermos a conta do número imenso de pessoas pacíficas, as quais nada tem a ver com os usuários de drogas, que são prejudicadas por meio da coerção dos impostos para subsidiar primeiro as ações coercivas contra o uso de drogas e, segundo, as medidas de tratamento. Verdadeiramente, prejudica-se um número difícil de calcular para proporcionar algum alívio para poucos, independente das estatísticas.
No entanto, um libertário não encara as coisas do ponto de vista utilitário, embora considere que uma sociedade plenamente livre, sob a Ética Libertária, seria muito mais produtiva econômica e moralmente. Encara sempre e somente sob o prisma da Ética e, aqui, não importa se o faz sob a Ética da Propriedade Privada (2) ou da Ética Argumentativa (3), pois ambas as correntes defendidas por Rothbard e Hoppe, respectivamente, chegam às mesmas conclusões. A autopropriedade defende que o indivíduo pode fazer o que bem entender com o seu corpo e a única restrição para suas ações é não iniciar violência física contra outra pessoa (princípio da não agressão – PNA). Portanto, é direito natural consumir drogas pois não implica violência física contra outra pessoa. O indivíduo está prejudicando somente a si mesmo.
Pode-se alegar, e com razão, os efeitos negativos sobre a sociedade do consumo de drogas. Mas, de novo sob a Ética Libertária, os efeitos negativos (ou externalidades) somente existem porque os direitos naturais de propriedade e autopropriedade são constantemente violados também para obrigar as pessoas a custearem os sistemas públicos de saúde. Assim, temos transgressões que de um lado reprimem o consumo de drogas e, de outro, obrigam inocentes a custear o tratamento das doenças em virtude das escolhas de outras pessoas.
Em um mundo ideal libertário, absolvido de coerções estatais, o indivíduo seria livre para escolher, mas também se obrigaria a suportar os riscos de suas escolhas ou de sua má sorte, porque os demais não seriam obrigados a bancá-los, a não ser que optassem por isso. Neste ponto, alguns defensores da liberdade individual (não libertários) costumam se confundir com algumas questões e, em especial com o consumo de drogas, parecem indecisos. Defendem a liberdade, mas drogas não. Ora, ou se é livre ou não se é. Não pode haver liberdade relativa sob pena de se viver como um homem “livre” mais ou menos escravo.
Mas então, como viveríamos em comunidade onde o consumo de drogas seria livre junto daqueles que não consomem drogas? É difícil apontar uma solução. Imaginar um mundo onde os fundamentos seriam outros é um exercício mental soberbo, não há duvidas. Todavia, a ética só pode ser eficaz se aceita, compreendida e exercida por todos e os fundamentos do libertarianismo precisariam ser aplicados na sua totalidade. Mais precisamente, o princípio da “secessão” até o nível do indivíduo pode apontar para uma
solução. Ninguém sendo obrigado a conviver com usuários de drogas bem como não compelidos a custear os efeitos nocivos dos vícios, poderiam simplesmente não se relacionar com essas pessoas, impedindo o acesso a lugares, ruas, condomínios e tudo o mais. Para ficar mais claro, podemos citar que não haveria políticas de “integração forçada”, o direito de propriedade não seria relativizado como nos dias de hoje e o proprietário editaria suas leis cujo único limite seria não iniciar violência física contra outros. Ademais, a associação seria somente e sempre pela livre escolha dos indivíduos.
Outra questão que pode ser levantada: quem cuidaria desses doentes? Não haveria nenhum tipo de assistência? Essas pessoas seriam entregues à própria sorte? A resposta pode ser variável. Dado que as pessoas seriam livres para associar-se ou desassociar-se, é possível que surgissem variados tipos de comunidades dispostas ou não a oferecer abrigo para usuários de drogas e custear o seu tratamento. Afinal, antes dos estados monopolizarem as ações de caridade e as transformarem em assistencialismo bancados pelos pagadores de impostos, é possível identificar na história as inúmeras entidades privadas que ofereciam algum amparo e tratamento aos necessitados. E mesmo nos dias de hoje não é difícil encontrar entidades privadas que oferecem este serviço voluntária e gratuitamente.
Do que foi dito até aqui, podemos também inferir algo relevante: o possível efeito moral contra o consumo de drogas. Ora, se sabemos que não haverá nenhuma certeza de apoio estatal, subsidiados por pessoas coagidas para esse fim, restando apenas a caridade voluntária, é muito possível que os indivíduos pensassem mais vezes antes de entrar no mundo das drogas. Neste ponto, podemos apontar algo que raramente vemos nas estatísticas (não vimos também no artigo referenciado): o estímulo que programas governamentais de tratamento público causam para o consumo de drogas. Da mesma forma que a certeza de não obter apoio pode frear o ímpeto ao vício, a convicção de conseguir arrimo em instituições ou programas estatais pode incentivar as más escolhas. Dito isso, a ação estatal no Oregon com a liberação total das drogas pode ter surtido o efeito indesejado porque de um lado libertou a demanda reprimida por drogas ao mesmo tempo que oferece tratamento gratuito, caminhando no sentido contrário da escolha moral.
De qualquer forma, um libertário “raiz” não deveria constranger-se com os efeitos iniciais da política de drogas no Oregon. Sim, é triste ver mais pessoas chafurdando no vício e fazendo opções que julgamos errado, mas, efetivamente, fizeram as suas escolhas e suportaram os seus efeitos. A moral, o direito, a justiça não são nada disso se não forem frutos de escolhas voluntárias, livres de imposição. A liberdade trás consigo a possibilidade do erro dada a incompletude do ser humano, no entanto, ninguém mais que o próprio indivíduo deve ser penalizado por suas decisões.
O “estado do bem-estar social” (welfare state) promovido pelos governos aos poucos vem substituindo o indivíduo nas suas escolhas e tenta isentá-lo das consequências negativas de suas ações (em suma, priva-o do livre-arbítrio), prometendo-lhe um mundo sem sofrimentos ou desilusões e afastando-o da realidade. Então, sem o perceber (ou talvez até intencionalmente), retira do homem o que o distingue dos animais: a razão, cujo exercício livre é o único meio de encontrar o caminho da moral: a consciência dos efeitos dos seus atos, para si e para os vizinhos, e a certeza da responsabilidade perante eles. Afinal, nascemos para viver e morrer e cada um deve ser livre para decidir o jeito próprio de fazer a ambos.
Enfim, um libertário deve acolher a medida do estado do Oregon ao liberar as drogas, aguardando ainda a ação para quem está no outro lado da moeda: a libertação dos demais indivíduos do jugo da responsabilidade pelos atos de terceiros.
Voltemos a trilhar o caminho da liberdade, da responsabilidade e da moral.
Referências:
(1) https://www.newsweek.com/two-years-later-oregons-drug-decriminalization-notgoing-well-opinion-1747113
(2) Rothbard, Murray N.. A ética da liberdade. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.
(3) Hoppe, Hans-Hermann. Uma teoria do socialismo e do capitalismo. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2013.