O mundo se desenvolve baseado no conhecimento passado e, nesse processo, a democracia é frequentemente saudada como o ápice da organização social, erguida sobre os escombros das monarquias. O senso comum ocidental não admite outra forma de organização, cuja antítese seria um desprezível regime totalitário (ou, “menos mau”, o socialismo). No entanto, a própria organização democrática carrega em seu íntimo problemas que a colocam em cheque se observada com mais atenção. Os governos democráticos, em princípio criados com a intenção de proteger a propriedade privada dos indivíduos e estes do próprio governo, se desenvolvem em uma escala crescente de coerção, autoritarismo e expropriação do capital privado. Exploraremos dois aspectos: os monopólios e a tragédia dos comuns.
Monopólios
Não me aterei nesse texto à defesa de que a democracia propriamente dita é um exemplo de monopólio, com todos os problemas que isso acarreta, porque não permite a existência de outros meios de organização social ou de governança. Tal assunto ficará para um artigo futuro. Meu argumento será contra monopólios estabelecidos pelo sistema democrático, como o da educação, saúde e segurança.
Monopólios, por definição isentos de concorrência, produzem bens e serviços de menor qualidade e mais caros dos que seriam produzidos em ambiente de competição. Um exemplo que ainda vive na memória dos brasileiros é o caso dos produtos e serviços das telecomunicações. Até a promulgação da Constituição de 1988, o regime do setor era de monopólio estatal, explorado pelo Sistema Telebrás. Desde então, ainda que altamente regulamentada, centralizada pela Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) – o que permitiu a formação de oligopólios de operadoras, a revolução na
melhoria dos produtos e serviços é visível a olho nu.
Por seu turno, o setor de alimentos é pouco regulamentado, ainda que para lançar um produto no mercado alimentício ou iniciar um negócio seja preciso ater-se aos ditames de órgãos como Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), afortunadamente não há uma agência encarregada de produzir, transportar e distribuir os alimentos que chegam às nossas mesas. Toda a cadeia de produção, transporte e distribuição é amplamente descentralizada; cada agente opera por sua livre iniciativa procurando atender às demandas do mercado. Quem visitou a Venezuela nos últimos anos deve ter percebido com espanto prateleiras vazias nos supermercados, em contraste com o Brasil onde chega a surpreender a quantidade e diversidade de alimentos nas gôndolas.
Também, felizmente no Brasil ainda não há uma ANAVE (Agência Nacional do Vestuário). É notável a variedade de empreendimentos que oferecem peças de roupas para todos os gostos e bolsos, de lojas de marcas famosas mundiais a brechós de roupas usadas com preços baratíssimos, sem falar nas instituições de caridade que ofertam roupas gratuitamente. Também não é difícil, infelizmente, encontrar sacos de roupas jogadas nas latas de lixo, tal a produtividade do setor.
Então, se os setores de telecomunicações, alimentação e vestuário produzem relativamente bem, por que os setores de saúde, educação e segurança mostram números negativos preocupantes? Por que somos submetidos às filas, atendimentos precários e à escassez artificial do sistema de saúde? Por que temos um sistema de educação com os piores resultados em comparação com outros países? Por que vivemos
em uma sociedade em que os investimentos privados em segurança (seguros, carros blindados, etc) são enormes porque o setor público de segurança não dá conta mesmo com os altos custos para os contribuintes?
A resposta pode estar no emaranhado de regulamentação e no monopólio estatal dessas áreas. Setores altamente regulamentados impedem a entrada de novos concorrentes, servem de obstáculos aos empreendedores, diminuem as iniciativas, obstruem a criatividade e a reprodução em escala das soluções encontradas. Embora o sentimento comum pense o contrário, as áreas de segurança, saúde e educação são necessidades humanas econômicas também submetidas aos princípios de oferta e demanda e, se deixadas às leis do mercado, a produtividade e qualidade serão melhores como encontradas em outros campos.
Os monopólios e regulamentações distorcem o sistema de preços, impedem a livre concorrência. A lei fundamental da economia, a escassez, é irrevogável (podemos ignorála mas não os efeitos de ignorá-la) e descartá-la em setores como o de saúde, educação e segurança é o que dá suporte aos resultados insatisfatórios que temos obtido.
A tragédia dos comuns
“A tragédia dos comuns refere-se a uma situação em que os indivíduos, agindo de forma independente, racional e de acordo com seus próprios interesses, atuam contra os interesses de uma comunidade, esgotando os bens de uso comum. Segundo a hipótese da “tragédia dos comuns”, o livre acesso resultaria na superexploração de recursos finitos, provocando o seu esgotamento”(1). Foi popularizada no ensaio “Tragedy of Commons” (1968), onde Garrett Hardin para defender sua argumentação usa como exemplo uma pastagem usada por vários pastores. Os pastores, desejando aumentar sua produção, aumentam o tamanho do rebanho sempre que possível. O acréscimo de cada animal dentro do pasto teria dois efeitos: um positivo, o pastor fica com o lucro de cada animal acrescentado; e um negativo, a pastagem é ligeiramente degradada por cada animal adicionado. Ou seja, o pastor fica com os lucros mas as desvantagens ficam distribuídas entre os demais pastores. Assim, cada pastor teria o incentivo de acrescentar seus animais ao pasto e isso levaria a superexploração e degradação do pasto. Não perfeitamente, mas ainda assim essa hipótese pode ser aplicada ao sistema democrático.
No sistema democrático a entrada para o governo é livre e igualitária (e só até aqui todos são iguais de fato). Qualquer um pode candidatar-se e galgar os postos disponíveis, não havendo privilégios pessoais, mas sim funcionais. Também há uma clara distinção entre o direito público e o direito privado: o primeiro exerce uma supremacia sobre o segundo. Então, instalados em sua cadeira funcional, os funcionários públicos (cargos políticos incluídos) são regidos e protegidos pelo direito público; logo, povo e governo constituem-se em entidades diferentes. Hoppe (2014, p. 55) nomina tais funcionários de “zeladores democráticos”.
Como na tragédia dos comuns de Hardin, a área de jurisdição (país, estado, município) de um zelador pode ser comparada ao pasto comum a todos os pastores, o zelador a um pastor e os demais cidadãos com os demais pastores. Dada a capacidade de tributar para arcar com as despesas correntes do governo e próprias, o zelador tende a aumentar os impostos sempre que necessário porque não sofrerá o custo dessa ação, ficará apenas com o efeito positivo. Além disso, o zelador temporário não é o proprietário privado da área onde exerce sua jurisdição e, portanto, não se importará com o crescente consumo de capital do meio privado.
A respeito das dívidas contraídas, o zelador temporário na figura de um governante não assume um passivo contra os seus bens pessoais; o fardo novamente ficará a cargo dos entes privados sob a administração do próximo zelador. A sua preferencia temporal tende a ser alta (visão de curto prazo) porque, com a expectativa de apenas alguns anos no poder, precisa auferir o máximo de vantagens possíveis no mais curto prazo.
O zelador temporário, como um funcionário público (não governante), responde aos incentivos um pouco diferente. Como não está sujeito às demandas dos consumidores em um mercado livre, seu salário não será aferido pelo sistema de preços da economia onde atua, mas sim por regulamentações arbitrárias baixadas pelo poder governamental. Seu principal meio será o chamado rent-seeking(2), ou seja, obterá sua renda pela manipulação do ambiente social ou político onde as atividades econômicas ocorrem, em vez de agregar valor aos bens e serviços; dito de outra forma, obterá riqueza sem a criação de riqueza correspondente. Greves, lobbies, operações-padrão, etc, serão os instrumentos utilizados. Entendido isso, não é de se estranhar a notável diferença de salários do setor público em relação ao privado.
Tanto as ações de zeladores governantes como a de zeladores funcionários públicos levam a superexploração e degradação do ambiente gerador de riqueza (setor privado) posto que, ao não sofrerem as consequências negativas de suas ações, encontram os incentivos que os conduzem a dilapidar o capital presente e futuro das jurisdições onde atuam.
Antes de concluir, é preciso esclarecer que não se trata de dilapidar a boa imagem dos funcionários públicos e políticos aspirantes ou em algum cargo, dos quais a maciça maioria são pessoas de bem preocupadas apenas em fazer um bom trabalho; tratamos aqui das circunstâncias e incentivos oferecidos pelo sistema a que estão submetidos.
Conclusão
Do exposto, podemos perceber que a democracia, considerada estado da arte da organização social do mundo livre, promove muito do que em princípio propunha combater: a desigualdade política entre os homens ao posicionar uns em condições vantajosas sobre outros. Os monopólios e a tragédia dos comuns não são exógenos ao sistema, mas efeitos dos incentivos que proporciona.
Fontes:
HOPPE, Hans-Hermann. Democracia, o Deus que Falhou. São Paulo: Instituto
Ludwig von Mises Brasil, 2014
(1) https://pt.wikipedia.org/wiki/Trag%C3%A9dia_dos_comuns
(2) https://pt.wikipedia.org/wiki/Rent-seeking