Sabe-se que a tentativa – por vezes, eficiente – de “calar o outro”, impondo-lhe medidas tendentes à censura, prévia ou posterior, não é uma novidade histórica, razão por que práticas desta espécie dificilmente causam surpresa naqueles que se dedicam à exposição pública de ideias, em consonância com os valores da democracia, do pluralismo político, e das liberdades de expressão e de consciência.
Porém, está em voga a chamada cultura do cancelamento. Esta tendência, grosso modo, visa a silenciar aquelas pessoas que não se alinham com determinadas correntes de pensamento, tidas por politicamente corretas no âmbito do debate público, sendo este, não raramente, mais marcado pela exigência de excessiva polidez do que pela coerência e verticalização da reflexão proposta.
Tendo em conta essa realidade, modelada pelos desdobramentos da chamada Era da Informação, foi apresentado, na Câmara dos Deputados, em 13/04/2023, o Projeto de Lei nº 1.873/2023. Em tese, tal proposta legislativa pretende alterar o Código Penal brasileiro, acrescentando-lhe dois novos tipos penais (crimes): o cancelamento virtual (art. 140-A) e o linchamento virtual (art. 140-B).
Segundo o art. 2º, do projeto em questão, o Código Penal passaria a viger com as seguintes disposições:
Cancelamento virtual
Art. 140 – A. Violar a honra ou imagem de alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, quando o ato é praticado através de redes sociais ou por qualquer outro meio que possibilite a interação social de forma virtual.
Pena – detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
§ 1º Se o cancelamento virtual for praticado por contas criadas para ocultar a identidade real do usuário (perfil “fake”):
Pena – detenção, de nove meses a três anos, e multa.
§ 2º Aplica-se a mesma pena do § 1º se o crime é cometido contra pessoa pública.
§ 3º Aumenta-se a pena de um terço a metade se o crime é cometido em concurso de agentes. a) Considera-se concurso de agentes um grupo formado por 2 (duas) ou mais pessoas.
Linchamento Virtual
Art. 140 – B. Ameaçar alguém, quando o ato é praticado através de redes sociais ou por qualquer outro meio que possibilite a interação social de forma virtual.
Pena – detenção, de um ano a três anos, e multa.
§ 1º Incorre na mesma pena de se o linchamento virtual for praticado por contas criadas para ocultar a identidade real do usuário (perfil “fake”).
§ 2º Aplica-se a mesma pena do § 1º se o crime é cometido contra pessoa pública.
§ 3º Aumenta-se a pena de um sexto a um terço se do ato resulta prejuízo econômico.
§ 4º Aumenta-se a pena de um terço a metade se o crime é cometido em concurso de agentes.
a) Considera-se concurso de agentes um grupo formado por 2 (duas) ou mais pessoas.
§ 5º Aumenta-se a pena de metade ao dobro se o linchamento resulta em violência ou vias de fato.
Em justificativa, atestou-se que, “Normalmente os discursos de ódio na internet vêm com a justificativa de liberdade de expressão dos pontos de vista. Pelo que se tem observado, o cancelamento virtual se tornou um problema social e não se restringe apenas ao ambiente virtual, repercutindo também no mundo real. Ele tem a capacidade de fragilizar a dignidade da pessoa, evidenciando seus traumas, deficiências emocionais, e desencadeando problemas de saúde mentais e sociais” (BRASIL, 2023, p. 4).
Além disso, de acordo com a autora do projeto, Deputada Rogéria Santos, “é necessária a criminalização – e punição – dos canceladores, na medida de sua culpabilidade, a fim de minimizar os danos causados às vítimas e de tentar impedir o avanço dessa cultura tóxica e prejudicial” (BRASIL, 2023, p. 6).
De imediato, percebe-se que tal projeto tem condição de suscitar inúmeras outras reflexões jurídicas e sociais, que, por óbvio, vão além dos limites de um modesto artigo informativo. Todavia, não é forçoso se questionar se tal proposta legislativa realmente atende à técnica jurídica, no sentido de inovar a legislação brasileira em vigor ou apenas confirmar, desnecessariamente, criminalizações já existentes em outros formatos de apresentação.
De todo modo, o debate está aberto e se apresenta como ambiente propício a diferentes linhas de argumentação. Assim, por ora, novamente, resta-nos aguardar a tramitação desta proposta legislativa para fornecer maiores detalhes.
Referências:
BRASIL. Projeto de Lei nº 1.873/2023. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2258559. Acesso em: 24 abr. 2023.